Capítulo 24 – A Arte de Dissimular
Ishikawa viu as duas atravessarem o portão e
continuou seguindo-as. Estava achando muitíssimo divertido ver as expressões
frustradas de Haruka para perder algum momento.
Subitamente, Haruka e Michiru pararam. O
garoto também deteve os passos e fingiu mexer dentro da pasta preta que
carregava, disfarçando. Levantando a cabeça discretamente, deu uma espiadela
nelas. As duas trocaram olhares, mas não pareceram falar nada, embora suas
expressões indicassem que estavam surpresas com alguma coisa.
“Por que pararam? Será que perceberam que estou seguindo? Vamos lá,
Takeo, se perguntarem, você diz que estava indo pra casa do Ryou. É, é isso
mesmo. Ryou mora nessa direção.” – o rapaz então suspirou de alívio quando Haruka
remexeu na bolsa e tirou um objeto que ele não conseguiu identificar.
“O que é aquilo? Kaioh também tirou alguma coisa de sua pasta. Não dá
pra ver direito, parece um...espelho? Mas o que... Hã? Por que estão correndo?”
– pensou o jovem. Rapidamente as meninas atravessaram a
rua em direção a um beco. Curioso, o garoto foi atrás.
Obstinado em segui-las, Takeo correu para a
rua sem olhar para os lados, quando ouviu uma longa buzinada e o grito de um motorista
de táxi. Assustado, o estudante recuou dois passos. Por pouco não fora
atropelado.
Ainda um tanto desnorteado, Ishikawa olhou em
volta e dessa vez atravessou a rua sem maiores problemas. Chegando ao beco, elas
não estavam mais lá. Confuso, Takeo coçou a cabeça. Deu mais alguns passos e
constatou algo intrigante: O beco era longo demais para as duas terem
desaparecido.
Simplesmente não daria tempo de atravessá-lo
e sumirem quando ele finalmente tinha as alcançado. Notou que os dois prédios
separados por aquele vão não tinham varandas. As duas construções pertenciam a
empresas e só havia janelas e várias caixas de proteção para condicionadores de
ar. Takeo olhou para cima e pensou: “Ok,
Tenoh é bem rápido, mas não a ponto de voar”. Estalou a língua entre os
dentes e riu do pensamento idiota.
“Talvez toda aquela confusão pra atravessar a rua tenha afetado minha
percepção, afinal.”
Quando resolveu dar meia volta e esquecer a
estranha experiência, o rapaz notou algo de cor preta saindo detrás de um
contêiner de lixo. Agachando-se, o jovem puxou o objeto pela ponta e arregalou
os olhos. Era uma pasta preta de estudante, da mesma que possuía.
Ishikawa esticou o braço e tateou por trás do
contêiner, procurando por mais alguma pasta. Sentiu a outra com a ponta dos
dedos, mas não teve como puxá-la, ela estava posicionada exatamente no meio do
recipiente. Desistindo, o garoto voltou sua atenção para o objeto que já
segurava. Abriu, tirou um caderno e folheou as primeiras páginas.
“Nome do Colégio: Mugen. Nome do estudante: Kaioh Michiru” –
leu o rapaz exibindo um largo sorriso. Michiru e Haruka realmente tinham
passado por lá.
Ishikawa voltou a ficar sério por um momento
e estudou a situação que encontrara:
“Será que sofreram um assalto? Mas...não faz sentido. O ladrão deveria
ter levado isso aqui. E, se esse foi o caso, como os três desapareceram tão
rápido?”
Sabendo da existência de um posto policial a
duas quadras, o garoto pensou em comunicar o ocorrido.
Se é que algo havia ocorrido realmente.
“Não sei o que poderia dizer ao policial. As pastas não estavam
simplesmente jogadas no chão...alguém definitivamente colocou nesse lugar.”
Levantando-se, Ishikawa saiu do beco com uma
expressão resoluta. Colocou a pasta de Michiru debaixo do braço...e seguiu para
casa.
[...]
Longe dali, um luxuoso carro preto entrou na residência
dos Kaioh. O motorista, Katou, não estacionou na garagem como de costume.
Fizera apenas a volta pela fonte na frente da mansão e parou, atendendo a um
pedido de Atsuko.
Mais cedo, ele tinha vislumbrado a expressão
frustrada da mulher quando ela saiu do Mugen Gakuen. Katou, gentilmente,
perguntou enquanto dava uma espiadela pelo retrovisor: “Daqui deseja ir para
casa, senhora?” E a mulher só meneou a cabeça, concordando.
Chegando em casa, Atsuko agradeceu brevemente
Katou e fechou a porta do carro. Viu outra à frente se abrir, dessa vez da sua
casa. Hanako, a mais nova das empregadas, recebeu-a com um sorriso.
- Bem-vinda de volta, senhora. – disse a
jovem dando um passo para o lado, enquanto a mulher entrava. – Gostaria de um
chá gelado? Morino-san acabou de
tirar a jarra da geladeira. Ele disse que talvez a senhora quisesse um, estando
o dia um tanto quente.
A voz de Hanako revelava uma empolgação da
qual sentia falta e Atsuko não pôde evitar sorrir para a garota. Por um
momento, sentiu um nó na garganta. Fisicamente, a jovem não lembrava em nada
Michiru, mas possuía aquela vivacidade típica da adolescência. A mulher
recordou como a expressão da filha sempre se iluminava ao mostrar sua mais nova
pintura ou composição.
Ou do sorriso que mostrou ao apresentar aquela corredora...
Em um gesto quase imperceptível, Atsuko
balançou a cabeça, como que tentando afugentar tais pensamentos.
- Boa tarde, Hanako. Vou aceitar o chá sim,
obrigada. Poderia levar até o escritório?
- Certamente, senhora. – disse a garota
sorridente fazendo uma breve reverência antes de dar meia volta e se dirigir
até a cozinha.
Atsuko então caminhou até o escritório, que
ficava no térreo da Mansão. Sentou na poltrona em frente à mesa e tirou o
telefone do gancho. Discou alguns números e esperou impacientemente alguém
atender. O pé já começava a bater no chão.
Ela então ouviu duas batidas na porta e deu
permissão para que entrassem. Hanako posicionou a bandeja com o chá gelado na
mesa, fez uma reverência e saiu, fechando a porta.
- Nakano-san?
Sim, sou eu. Meu marido pode falar no momento? Sim, eu espero. Obrigada.
“E então? Como foi?” – disse a voz do outro
lado da linha.
Ao ouvir a voz grave do marido, Hiromasa
Kaioh, Atsuko se reclinou na poltrona e cruzou as pernas. Com o tempo aprendeu
a apreciar o modo sem rodeios como o homem se expressava ao telefone.
- A verdade é que não sei dizer, Hiro. –
respondeu Atsuko, os dedos massageando lentamente a têmpora.
“Pelo jeito a conversa não foi muito
tranquila. Mas isso eu já devia esperar, em se tratando de vocês duas.” –
apesar de o tom de voz do homem não ter sido repreensivo, a mulher percebeu
certo desapontamento.
- Michiru sabe ser incrivelmente teimosa
quando quer. – adiantou-se a mulher, parecendo se justificar.
“Claro que sabe. É sua filha também, afinal.”
– a voz dele adquiriu um leve tom divertido e Atsuko revirou os olhos.
- Bem, fiz como combinamos. Disse a ela sobre
a revista e que isso ajudaria a fechar um negócio. Disse também que você nem
mesmo sabia da minha ida ao colégio para fazer esse pedido.
“Ótimo. Acha que conseguiu convencê-la?”
A mulher ficou em silêncio e tomou um gole do
chá gelado, aproveitando para limpar a garganta. Lembrou-se do rumo que a
conversa tinha tomado no colégio. Hiromasa entendeu a pausa como hesitação e
logo perguntou:
“Atsuko, você não a obrigou a vir, obrigou?”
- Acabei fazendo isso. Usei meu tom de voz
mais calmo e isso só pareceu deixá-la mais desconfortável. Então fui
mais...assertiva e disse que o compromisso já estava marcado.
O homem suspirou longamente.
“Atsuko...”
- Deixe-me explicar. Nós dois sabemos que
você não precisa da ajuda dessa revista para fechar negócio algum, certo?
“Certo. Embora uma exposição positiva da empresa
seja sempre muito bem-vinda.”
- Mas ela não faz ideia disso. Ter dito que
marquei o compromisso por ela dá a sensação dessa entrevista ser realmente
importante para sua carreira.
“Entendo...” – ele fez uma pausa, parecendo
considerar a explicação. – “Mas essa sua estratégia também pode sair pela
culatra e só afastá-la.”
- Acredito que por você, ela pode até reconsiderar.
“Tenho certeza de que ela também sente a sua
falta.”
- Acho difícil. Afinal, Michiru só pôde ver o
meu desapontamento com ela naquele
dia. Nunca viu o seu.
“Não precisa me falar o que já sei, Atsuko.”
- Sim, eu preciso. Minha decisão naquele dia
foi certamente precipitada, mas eu vi o quanto ficou frustrado quando lhe
contei sobre ela e aquela garota.
Provavelmente, depois que telefonou para Michiru, você deixou a impressão de
que está lidando muito bem com esse relacionamento,
quando nós dois sabemos que não é bem assim.
Hiromasa ouviu tudo, sem interromper. Atsuko
tomou mais um gole do chá. Sua boca insistia em ficar seca.
“Você tem razão quanto a isso, Atsuko.” – sua
voz saiu com um fiozinho de cansaço, não era a primeira vez que tiveram aquela
discussão. – “Contudo, nossa desaprovação não pode nos impedir de falar com a
nossa única filha.”
A última afirmação veio como uma pancada no
estômago de Atsuko. Às vezes detestava a sobriedade dos comentários do marido.
- Eu estou tentando lidar com tudo isso.
Realmente estou. Do contrário eu não iria até o colégio colocar esse seu plano
em prática.
“E eu agradeço por isso. Apenas...não seja
tão orgulhosa.”
- E você tente não ser tão condescendente.
Os dois ficaram em silêncio por alguns
segundos, lidando com o efeito das palavras trocadas. Em um silencioso e
invisível acordo, decidiram adiar por hora a conversa.
“Atsuko, Nakano veio avisar que precisam de
mim...”
- Sem problema, Hiro. – adiantou-se a mulher.
– Bom trabalho.
“Obrigado. Conversamos mais tarde.”
- Certo.
Atsuko desligou o telefone e inclinou-se para
frente, apoiando o queixo em uma das mãos. Pedaços da conversa com o marido
ainda ecoavam em sua mente e, mesmo sentindo-se incomodada, admitiu que
Hiromasa estava certo. Pelo menos em alguns pontos. Muito embora ela não
tivesse o interesse imediato em confessar isso ao marido.
“Talvez eu realmente precise engolir meu orgulho...” –
pensou a mulher, olhando distraidamente o gelo derreter no copo do chá.
(continua)