Capítulo 18 - A aposta.
Uma e meia da manhã. A loira encarava o teto, deitada na cama de casal com as mãos por trás da nuca. A companhia de certa garota teve efeito semelhante a um bom chá. Relaxante.
Sua breve jornada no cemitério deixara-lhe interessantemente renovada. Chorar ajudou. Chegara em casa e antes de abrir a porta, passou os dedos nos olhos para ter certeza que as lágrimas não iam reaparecer. Encontrara a violinista debruçada na varanda do apartamento, parecia tão imersa nos próprios pensamentos que só notou a presença da outra quando ela já estava ao seu lado. Abraçou-a. Foi retribuída.
A corredora apontou uma sacola que carregava e disse algo sobre alguma comida. A Sailor dos Mares olhou brevemente e sorriu. Puxou a garota com o pacote até o quarto e a fez se deitar. Uranus entregou-lhe hashis e comeram uns sushis ali mesmo na cama. Passaram horas conversando e trocando uns beijos. Ao olhar o relógio na mesa de cabeceira, espantaram-se. Haruka tratou de jogar os pacotes no lixo e a violinista tomou um banho rápido. Reencontraram-se na cama e deitaram em silêncio, ultimamente as noites custavam a passar.
Mais tranquila, a velocista fechou os olhos deixando que o frio do ar condicionado afagasse seu rosto. Em seguida, desligou o abajur para que só a luz natural adentrasse o quarto. Seu edredom azul claro logo a esquentou, assim com o corpo que se acomodara ao seu lado. Neptune trajava uma camisola de seda, cor de pêssego; um pequeno luxo encontrado numa das malas. Sem pressa, colocava uma das pernas por cima das de Uranus, encaixando-se de modo que parecesse um só corpo quase. Passando um dos braços em volta da violinista, a corredora logo interrompeu o silêncio.
- Você é uma provocadora, sabia?
- Isso seria uma reclamação?
- Jamais...
- Está melhor?
- Vou ficar, obrigado.
- Que bom. – riu Neptune aninhando-se no corpo da outra.
- Como... como me aguenta, Michiru?
- Três palavras...
- Boa de cam...? – a loira riu, antes de completar.
- Eu não ia dizer isso, mas ajuda também... – a Sailor sorria, ao notar que o humor da amante parecia estar voltando – Ah... e como sabe se é boa de... você sabe...
- Ué, pela reação do outro. Aliás, pela sua reação, princesa...
- Hum... e se eu estiver fingindo? – provocou, imaginando que tipo de reação teria a loira com a pergunta.
- Quer que eu enumere as evidências de que não está? – Haruka sorria, vendo Michiru corar.
- Não precisa.
- Número um...
- Haruka! – puxava uma das bochechas da corredora, em repreensão.
- Que foi? Ai!
- É engraçado que esse assunto traga teu humor de volta. – ria.
- Não só o meu... dizem que ele move o mundo, né?
- “Ele”?
- Você sabe...
- Entendi...
- Não acha importante?
- Bom, sim... mas...
- Se não acha tão importante, consegue ficar sem por um tempo?
Uranus sorria, vendo a parceira arquear uma sobrancelha.
- Como assim?
- Eu aposto que em cinco dias... Não, em dois dias você vai sentir falta, muita falta... e vai me atacar.
- Olha só quem fala... – Michiru revirou os olhos.
- Ei! Eu consigo me controlar!
- Sério? – Neptune perguntava entre risos, não acreditava na loira. – Vale provocar, não é?
- Claro.
- E o que acontece quando eu ganhar, digo, com o ganhador?
- Digamos que o perdedor fará tudo que o ganhador quiser... por um dia.
- Apostado. Sabe, parece que teve bastante tempo pra pensar nisso, ‘Ruka... – a violinista traçava círculos com os dedos no abdômen da Sailor, que se arrepiava ao toque.
- Minha mente viaja bastante enquanto dirijo...
- Ah, é? E com que freqüência eu apareço nas suas... viagens?
- Noventa e nove por cento das vezes... – a loira respondia, beijando a Sailor em seguida.
- E o 1%?
- Uso pra me lembrar de trocar de marcha.
Michiru soltou uma gargalhada antes de falar.
- Apareço sem roupa, imagino.
- Completamente. – sorriu a outra com cinismo.
- A aposta não começou né?
- A partir do meio-dia...
- Então agora, tecnicamente não vou perder...
- Provocadora.
[...]
Neptune esforçara-se acordando antes da velocista. A primeira das duas tarefas que se deu.
A segunda esperava-a na cozinha onde improvisou um desjejum. Não iria ganhar prêmio algum de culinária, mas a loira não morreria de fome. Todavia ao olhar a omelete escurecida, não descartou uma indigestão.
- Bom dia ‘Ruka. – cumprimentou Michiru com um sorriso, vendo Uranus esfregar os olhos ainda sonolenta.
- Bom dia... Hey, mas que cheiro é esse?
- Peixe, arroz, chá e uma omelete queimada... – a garota apontava com certo constrangimento. Haruka apenas sorriu, aproximando-se.
- Parece ótimo. Obrigado, mas não precisava ter se incomodado. Quer dizer, dormiu pouquíssimo, levantou antes de mim e ainda preparou essa refeição?
- Essa conversa toda não é por medo de provar minha comida, é?
- Ora, só estou agradecendo! – ria.
- Agradeça à Morino-san, ele escreveu o básico pra mim também...
- Não... – se aproximava da Sailor, abraçando-a por trás – Eu agradeço a você... seria estranho beijar a nuca de Morino-san.
Michiru ria, permitindo que a carícia continuasse antes de perceber que as mãos de Uranus aventuravam-se por dentro da blusa do uniforme.
- Haruka...a...a-aposta...
- Tá longe do meio-dia...
- E o...desjejum?
- Tá longe da minha boca... você está mais perto. E eu prefiro você...mil vezes.
- Por mais que eu goste da ideia de substituir o colégio por atividades mais... prazerosas, não posso faltar outro dia. Imagino o que falaram de mim. Aliás, você esteve no dia em que faltei, disseram algo?
E era exatamente o tipo de pergunta que a corredora queria evitar. Talvez um sorriso disfarçasse. Talvez às sete e quinze da manhã Neptune não estivesse tão observadora.
- Eu estava ocupada demais pensando em você pra notar...
- Mentirosa... – ria.
Uranus pensou que talvez devesse se empenhar mais nos sorrisos.
- É verdade!
- Tá, tá... vamos comer antes que esfrie.
[...]
Uma caminhada sem pressa levava as Sailors em direção ao colégio Mugen. A uma distância mediana, já conseguiam ver os portões do lugar. Altos, imponentes e adornados com a logomarca da escola: uma grande estrela negra marcada ao centro pelo símbolo matemático referente ao infinito. O material das grades revelava o que uma considerável mensalidade faz.
- Realmente não precisava ter comido a omelete, ‘Ruka. Estava horrível. – disse a Sailor dos Mares com ar preocupado.
- Besteira, foi só um pouco afinal. Acho que fiquei empolgada porque há um bom tempo não como comida caseira...
- Verdade? O que costumava comer de manhã?
- Vejamos... sanduíches naturais comprados ou muitas vezes nada, não tenho muita fome de manhã. Yoshiro pegava muito no meu pé por causa disso.
- Hanako me obrigava a comer também. – riu a outra.
- Quem é Hanako?
- Ora, você a conheceu, é aquela garota que levou os biscoitos no meu quarto. Enquanto eu, você e Elza estudávamos.
- Oh, a gracinha de cabelos curtos... – a loira olhava para cima, tentando se lembrar de mais detalhes.
- Sabe Haruka, eu posso queimar omeletes todos os dias se quiser... – o tom não era dos mais alegres.
- A-Ah, não... obrigado...
Atravessando finalmente os portões, Michiru notou olhares receosos em sua direção. Eram das mesmas pessoas que todas as manhãs cumprimentavam-na, oferecendo sorrisos duvidosos.
- Haruka, é impressão minha ou certas pessoas estão me evitando? Quer dizer, não que eu reclame, sei que algumas não me cumprimentavam sinceramente...
- Bom...
- Nossa, então o puxão de orelha que Tenoh-kun deu realmente funcionou, não?
Takeo apressava-se dando dois passos ficando agora lado a lado com Neptune. Por reflexo, Uranus passou o braço pelos ombros da Sailor. O rapaz ria...
- Que...puxão de orelha, Haruka?
- Bom dia pra você também, Ishikawa... – a loira olhava-o de soslaio. Parte de seu humor começava a se esvair. – Não é nada demais, Michiru...
- Olheiras, Tenoh-kun? Não tem dormido bem? – perguntava Takeo observando rapidamente o rosto da corredora. É incrível o que o tom de uma frase podia revelar... A pergunta não continha preocupação.
- Por quê? Você quer cantar canções de ninar pra mim à noite? – disse Haruka com um sorriso e a violinista segurou uma risada.
Normalmente a corredora trincaria os dentes e faria alguma ameaça, mas, uma madrugada bastante proveitosa com Michiru não tiraria seu humor tão rápido. Assim esperava.
- Nada especial. – respondeu o rapaz um tanto sério, para em seguida emendar um sorriso carregado de provocação. – E eu prefiro fazer isso pra sua amiga. Você não pode me culpar...
A loira sentiu a testa esquentar rapidamente, como se o sangue tivesse cronometrado o tempo de entrar em ação. Levou a mão aos cabelos e passou com arrogância pelas mechas, num ato que Michiru reconheceu bem. Narciso dera as caras novamente. A loira sempre o convocava para lidar com tipos como o de Takeo.
- Culpar? – perguntou Haruka, num esforço para manter o sorriso. – Claro que não. Mas eu suponho que pra agradá-la, você deva pesquisar mais sobre o que ela gosta de ouvir antes de ir para a cama.
Alguns alunos que ainda conversavam perto do portão viraram as cabeças. Talvez tivessem escutado o final da frase. O fato, é que de Haruka, encararam Michiru, a essa altura fervendo de constrangimento. Neptune não se viu, mas imaginou que sua face estava mais vermelha que o círculo central da bandeira japonesa. Por um momento, pareceu que seus olhos pulariam das órbitas num movimento suicida e seu coração dançara Foxtrot com os pulmões.
Lividez definia a face do rapaz e a corredora parecia satisfeitíssima por presenciar.
- Musicalmente falando, é claro. – completou Haruka antes de soltar uma risadinha e Michiru pensar em jogá-la da Torre de Tóquio.
- Claro... – respondeu Takeo forçando definitivamente um sorriso simpático. – Mas me diga Michiru, o que gosta de ouvir antes de ir para a cama?
Às vezes respirar profundamente é tudo que precisamos para nos acalmar.
Às vezes.
Todavia, antes que a loira esboçasse qualquer resposta malcriada, se deparou com a professora Narumi segurando uma pilha de papéis.
- Ah, que bom ver vocês. – falou a mulher agarrando os encadernados com uma mão enquanto a outra era ocupada com sua bolsa preta. – Estes são os roteiros da peça, vamos logo para a sala?
Os três entreolharam-se e chegaram a um acordo silencioso de que a discussão terminara ali. Zero a zero mas com um possível segundo tempo.
- “Musicalmente falando?” – cochichou Neptune em tom descrente para Uranus a caminho da sala.
- Que outro sentido poderia haver? – retrucou em tom despreocupado.
- O seu descaramento tem limite?
Haruka deu uma risadinha.
- Que bom que acha meu constrangimento engraçado, Haruka. Parece que vencer a aposta vai ser ainda mais simples do que pensava.
- Você é tão dura comigo, Michiru-chan...
(continua...)
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