Capítulo 21 – Visitas inesperadas.
Com passos rápidos Uranus chegou à enfermaria localizada no térreo, no fim do bloco do prédio de Artes. Um dos lugares mais sossegados no Mugen Gakuen. A corredora conhecia bem o caminho.
Vendo a plaquinha de identificação na porta, a jovem se aproximou e espiou a pequena janela de vidro. Girou a maçaneta e entrou.
Era uma das poucas salas no colégio a não possuir portas deslizantes. Decidiu-se que a combinação de adolescentes curiosos, remédios e portas corrediças não era muito sábia, então se deu lugar à chave e maçaneta.
Paredes brancas, boa iluminação, persianas azul-claro combinando com o sofá de curvin azul-escuro e almofadas brancas, era mais espaçosa que as enfermarias das outras escolas. Ela ainda comportava uma cômoda para lençóis, fronhas e toalhinhas, prateleiras de madeira com rolos de gazes, caixas de comprimidos, esparadrapos e algumas seringas. Havia também três camas estreitas divididas por biombos, ocupadas geralmente depois de uma aula de Educação Física mal-humorada de Izumida ou um treino de beisebol pré-campeonato.
Haruka fechou a porta atrás de si e viu a conhecida silhueta sentada em um banquinho perto da janela. De saia e jaleco brancos, cruzara as pernas enquanto saboreava um chá gelado em latinha. A corredora deu um meio sorriso e pôde esquecer por alguns segundos a dor.
Ao ouvir o clique da porta, a enfermeira virou-se.
- Ora ora, olha quem chegou... – disse a mulher com um sorriso olhando de esguelha para a loira. – O que vai ser hoje? Febre? Resfriado? Dor nas costas? Dor de cabeça?
- Falando assim, parece até que inventei tudo isso. – Haruka sentou-se na beira de umas das camas e observou a mulher dar o último gole para jogar a latinha no lixo.
- É, parece.
Uranus deu uma risadinha antes de o estômago alertar que ainda estava incomodado. A mulher observou a adolescente levar uma das mãos à barriga e constatou um problema real.
- O que está sentindo, Tenoh?
O tom da voz e a menção do sobrenome revelaram a preocupação de Yuko Kimura.
- M-Meu estômago dói...
A mulher levantou, pegou o banquinho e sentou próxima à corredora.
- Deite e levante um pouco a blusa por favor, Tenoh. – falou calmamente a enfermeira, posicionando uma das mãos no ventre da garota e logo depois pressionando um ponto. – Dói aqui?
- Não...
- O que comeu no intervalo?
Yuko viu o rubor da jovem e baixou novamente a blusa. Soube que era uma garota na primeira visita dela na enfermaria. Na época, Haruka chegou tossindo e praguejando, reclamando do último treino mais cedo com um tal de Yoshiro. Comentou sobre a poeira da pista de corrida e como ele a fez correr sem descanso. Ao levantar a parte da cima do uniforme para a profissional auscultar com o estetoscópio, acabou mostrando o sutiã-sport branco e lançou um olhar questionador. A mulher sorriu tranquilizando-a.
“Não se preocupe, não vou falar nada. Para ninguém.” Yuko cumprira sua palavra.
Então ganhou a confiança da adolescente.
- No intervalo nada, só que mais cedo comi peixe e uma omelete... – respondeu a loira.
- Parece que foi indigestão. – disse Yuko oferecendo um comprimido. Haruka aceitou com uma careta. – Devia estar estragado ou muito oleoso. – completou Kimura.
- Foi omelete. Estava bem queimado, parecia um pastel de carvão!
- Ora, aprenda a cozinhar, Haruka.
- Não fui eu quem cozinhou.
- Quem foi?
- Alguém que...ainda está aprendendo. Não quer cozinhar pra mim?
- Tome seu comprimido.
- Sem água?
- Economize a saliva que usa para tagarelar e tudo vai dar certo.
A jovem enviesou o sorriso. Yuko Kimura não facilitava e isso só tornava a brincadeira mais interessante...
[...]
Michiru se aproximava do refeitório, quando uma aluna tocou-lhe o ombro. Eri Nakamura cumprimentou-a rapidamente.
- Kaioh-san, o diretor quer vê-la. Acabei de voltar da sala e ele nos deu permissão para fazer os panfletos da peça! Não é ótimo?
- A-Ah, sim... – respondeu a outra sem muito entusiasmo – Sabe dizer o que ele queria?
- Não, ele só pediu para chamá-la.
A violinista agradeceu e atravessou o corredor sem saber o que esperar da convocação. Desde que entrara no Mugen só visitara a diretoria uma vez: no dia em que se matriculou. O homem fizera questão de conhecê-la e apertar-lhe a mão, gesto que a jovem atribuiu ao seu sobrenome.
“É uma honra recebê-la em nosso colégio, senhorita Kaioh. Seu pai e eu conversamos por telefone e lhe assegurei que nosso ensino é o melhor, além de contarmos com alunos excepcionais, de famílias...”
“Ugh.”
A garota irritou-se só de lembrar do diálogo. Não, definitivamente não gostava do diretor.
Neptune deu duas batidas rápidas na porta e entrou na sala. Mantinha a atmosfera pretensiosa, como recordava. Embora a disposição dos objetos tivesse mudado.
À esquerda viam-se dois sofás pretos revestidos de couro e a mesinha de centro de mesma cor, juntamente com a estante de livros que a garota nunca se deu o trabalho de especular o conteúdo. À direita uma porta que dava para o que Michiru sabia ser um banheiro. À frente via-se o diretor, Nobuaki Hiyama, de terno preto e bem acomodado na poltrona cinza de couro, de encosto quase um palmo acima da cabeça, o que o tornava uma figura imponente...Até que se levantasse e mostrasse seu 1,57m de altura e pezinhos que Haruka podia jurar balançarem escondidos por trás da mesa.
Nobuaki assumira o cargo provisoriamente. Contudo, circunstâncias mal explicadas o fizeram diretor por tempo indeterminado. Boatos voavam pelo Mugen, sobre o verdadeiro dono do colégio, o cientista Souichi Tomoe. Maldosos ou esdrúxulos, as especulações pelos corredores pareciam não cessar.
“Ouvi dizer que o antigo diretor perdeu a esposa em um dos experimentos!”
“O tal Tomoe é louco, vive recluso numa mansão e mantém a filha presa, sabia?”
“Não, a filha dele é pequena e vive doente, acho que é alguma coisa no coração...”
“Soube que Hiyama-san se aproveitou da loucura de Tomoe-san para pegar o cargo...”
A violinista conhecia a maioria das versões da história do tal cientista e tinha um pressentimento ruim sobre elas. Porém, no momento ela e Haruka não dispunham de tempo para averiguar a veracidade de boatos.
Estreitando os olhos como se analisasse uma tela, Michiru estranhou a nova decoração do espaço. Desconfiou que Nobuaki tivesse convocado vários designers e arrancado uma página de cada um dos projetos, fazendo do local um desconfortável espetáculo exibicionista. Em uma olhada rápida o ambiente poderia impressionar, contudo, alguém mais artisticamente perceptivo torceria o nariz. A jovem não pôde conter um sorriso, ainda que discreto.
“O dinheiro nem sempre pode comprar bom gosto...” – pensou.
O sinal avisando o término do intervalo tocara no exato momento em que Nobuaki Hiyama convidou a violinista para sentar-se na cadeira em frente a sua mesa. A garota concordou com a cabeça.
- Não se preocupe com o sinal, Kaioh-san. – disse o homem impostando estranhamente a voz enquanto tirava o óculos e limpava-o com um lenço de papel de uma caixinha em cima da mesa. – Falarei com o professor da aula atual para não lhe dar falta. – continuou. Estava sorrindo e a garota achou de bom tom retribuir.
- Obrigada, Hiyama-san.
[...]
Na enfermaria, Haruka esperava sentada em uma das camas o comprimido fazer efeito quando ouviu o sinal tocar. Fez menção de levantar, contudo a enfermeira interrompeu.
- Acho melhor ficar quietinha aí, até passar a dor. – disse Yuko calmamente.
- Ah, não é pela minha companhia que quer me manter aqui? – perguntou a estudante com falso ar ofendido.
- Ah, claro... – respondeu Kimura esboçando um sorriso – Porque sou paga para bancar a babá de vocês, adolescentes.
- Não sentiu minha falta? Nem um pouquinho? – disse a corredora aproximando o dedo indicador do polegar, em um sinal de mínimo.
- Talvez assim... – a mulher estendeu a mão e encurtou ainda mais o espaço dos dedos da jovem. Haruka deu uma risadinha.
- Nossa, que cruel, Yuko-chan...
“Yuko-chan”. A enfermeira suspirou. Havia desistido de corrigir a velocista e impor o “Kimura-san” pelo qual os outros estudantes a chamavam. Referia-se constantemente à garota pelo sobrenome, indicando que desejava o mesmo tratamento, porém Haruka a ignorava. E exibia um sorriso enquanto fazia isso.
Yuko Kimura chegou ao Mugen logo após Sayoko Arai se aposentar. A direção notara que os adolescentes se aproveitavam da complacência da antiga enfermeira, sempre os tratando de estranhíssimos sintomas e doenças, como dores no dedo mindinho ou tornozelos que torciam três vezes por semana.
Quando Kimura, na época com vinte e seis anos assumiu o cargo, solucionou o problema das constantes visitas mostrando uma seringa com uma enorme agulha. As bizarras doenças diminuíram bastante. Milagre.
Os olhares e atenções, por sua vez, continuavam os mesmos ao longo dos anos. Aos trinta e um anos, Yuko era uma mulher atraente. Cabelos acobreados presos em uma longa trança, pernas torneadas e um sinalzinho próximo à boca, faziam de Kimura alguém muito popular, sobretudo em um colégio povoado por jovens com hormônios pululantes.
[...]
Michiru acomodou-se na cadeira e esperou o homem falar. Parecia um tanto incomodado. Passou a mão pela careca e finalmente disse:
- Bem, chamei-a aqui para resolver umas...pendências.
- Pendências? De que tipo?
O homem olhou rapidamente para a esquerda e parou ao ouvir a porta do banheiro abrir. Michiru seguiu o olhar do diretor e franziu o cenho. “Por quê?” pensou.
- O que está fazendo aqui? – disse a violinista em um tom áspero que surpreendeu Nobuaki, mas nem tanto a pessoa que estava agora na sala...
(continua)