Capítulo 26 – Concha.
Chegando ao apartamento
que dividia com Haruka, Michiru mal ouviu o porteiro falar. Imaginando ser o
cumprimento habitual, apenas meneou a cabeça em retorno. As Sailors entraram no
elevador e não trocaram uma única palavra durante o trajeto. De repente, aquele
cubículo pareceu muito menor do que era. Estava sufocante.
Impaciente, a violinista
tirou a chave do bolso da saia, abriu a porta e entrou sem olhar para trás. Em
seguida, foi até a cozinha em busca de um chá gelado. Escutou Haruka fechar a
porta e o som de seus passos se aproximando. A corredora se aproximou dela
devagar e recostou-se na pia. Estavam a um palmo de distância.
Michiru tomou um gole do
chá e, nesse momento, apreciou o silêncio entre elas, desejando não precisar discutir
as contrariedades vivenciadas mais cedo. Pela primeira vez a violinista refletiu
sobre as desvantagens de dividir o mesmo teto. A impossibilidade de se isolar
podia ser bem frustrante.
Quando morava com seus
pais, era fácil encontrar um lugar aonde pudesse ficar sozinha. Havia tantas salas
e quartos naquela mansão. Cômodos belissimamente decorados... E tristemente
vazios. Nem mesmo quando seus familiares visitavam, a casa parecia cheia. Com
tanto espaço, a violinista certamente possuía cantinhos favoritos.
Era no escritório de seu
pai que se refugiava quando seus primos mais velhos a aborreciam. Já no gazebo
do jardim, costumava ler ou pintar. A fonte, perto desse mesmo local,
geralmente melhorava seu humor. Ouvir a água jorrando lhe trazia uma imensa
paz... Quase tão bom quanto ouvir as ondas do mar banharem a areia.
Tais lembranças trouxeram
conforto momentâneo, e Michiru fechou os olhos por um momento, querendo
prolongar a sensação.
- Dia difícil, huh? –
perguntou a loira baixinho, fazendo com que sua voz saísse ainda mais rouca.
Michiru precisou se
conter antes de responder prontamente um “Não
imagina o quanto”. Além do sumiço de seus pertences, ela ainda tinha uma
rusga mal resolvida com a corredora. Entretanto, fora a conversa com a mãe que
colocou o tempero final em seu estado atual de amargura.
Notando o desconforto da
garota, Haruka desencostou-se da pia e sentou em uma das cadeiras da mesa. O
gesto pareceu ter surtido algum efeito sobre Michiru, que relaxou levemente os
ombros. Encorajada pela linguagem corporal da outra, Haruka tentou abordar o
assunto de outra forma:
- Numa escala de 1 a 5, o
quanto chateada está comigo? – perguntou ela em um proposital tom divertido,
tentando manter a conversa leve.
- Três, eu diria. –
respondeu a outra sem rodeio, encarando-a.
- Certo. – a loira
esfregou a nuca e riu nervosamente. – Mas há algo mais, não é? Você voltou
estranha do intervalo. Não quer me contar o que houve?
Quando Haruka viu a
garota desviar o olhar, soube que seus instintos estavam certos: havia outra
coisa incomodando a Sailor dos Mares. A árdua tarefa era saber o quê; pois Michiru
ainda estava aborrecida com ela.
- Nada de importante. –
respondeu Michiru baixinho, imediatamente se dando conta que não fora uma
resposta convincente.
- Qual é, Michiru... Algo
aconteceu, eu só não sei o que foi. Não confia em mim?
A pergunta foi como um
estalo perto do ouvido. O questionamento trouxe de volta o assunto interrompido
mais cedo, quando a velocista simplesmente abandonou-a no intervalo, correndo
como se estivesse em uma maratona.
A violinista ouviu a
loira suspirar e sentiu-se pressionada a responder.
- Eu poderia perguntar a
mesma coisa. – falou Michiru, antes que pudesse conter a própria língua. Sabia
que a conversa não estava indo por um bom caminho, mas de repente sentiu
necessidade de despejar tudo que engolira mais cedo.
- Eu ficaria feliz em
responder se soubesse do que está falando.
- Falo da história do
piano. Aposto que inventou isso só para ficar de olho em mim no ensaio com Ishikawa-san.
- E-Eu estou cuidando da
sonoplastia, Michiru! – exclamou a corredora, endireitando a postura tentando
parecer mais confiante. Mas, o tom desesperado com que respondeu só aumentou o
aborrecimento da outra garota. – Achei que seria uma boa ideia criar algo pra
peça. – completou.
- Sabe... – falou Michiru
com uma calma forçada que Haruka conhecia bem. – É estranho você vir falar de
confiança, quando uns minutinhos sozinha com Matsuda-san fizeram seus olhos montarem acampamento nas pernas
dela.
Haruka fez seu melhor
para conter uma risada. Pelo menos isso ela poderia esclarecer sem problemas.
- Ainda está brava com
isso? Você está equivocada, Michiru. Eu posso explicar.
- É mesmo? Devo deixar a
porta aberta para você sair correndo como da última vez? – perguntou a
violinista cruzando os braços.
Com isso, Haruka fechou a
cara e Michiru manteve o olhar acusador. Ainda tentando entender como o clima
entre as duas havia piorado, a velocista levantou-se e andou até a entrada
cozinha, de onde falou:
- Parece que não importa
o que eu diga, serei sempre culpada. Seja lá do que for.
Percebendo que Michiru
continuava impassível, Haruka saiu da cozinha e atravessou a sala,
embrenhando-se no quarto. Teve vontade de pegar a chave do carro e dirigir até
que a adrenalina da velocidade substituísse sua raiva. Mas, se fizesse isso,
daria mais munição paras as acusações de Michiru. Em vez disso, foi ao quarto
pegar algumas peças de roupas e se trancou no banheiro. Talvez, uns bons e relaxantes
minutos dentro da banheira a ajudassem encontrar a melhor maneira de resolver
aquele desentendimento.
Além disso, era óbvio que
a violinista não queria conversar. Era quase como se...
“Como se ela estivesse usando uma briga idiota pra
desviar a atenção do real motivo de seu aborrecimento. Sim, pode ser isso...
mas o que será que tanto a preocupa?” – pensou a loira, deixando o corpo
afundar na água quente da banheira.
Em sua convivência diária
com Michiru, Haruka sabia que a garota tinha tendência a se isolar. A Sailor
dos Mares podia ser insondável quando queria.
Nesses momentos, era como
se Michiru se deixasse tragar pelas profundezas do mar, descendo lentamente
enquanto observava a luz do sol ficar cada vez mais e mais distante... Até que
uma mão – com dedos longos e delicados – cortasse a água e puxasse-a de volta
para a superfície.
(continua)