Capítulo 22 - Confronto, comprimidos e
alguns conselhos. (parte 1)
Nobuaki
tinha certeza que o ar condicionado estava ligado. A ordem para Kenta, o
funcionário encarregado da limpeza, tinha sido clara: depois de limpar a sala,
o aparelho era sempre ligado. Simples assim. O diretor detestava o calor e
quando chegava em sua sala, gostava das boas-vindas daquele ar frio em seu
rosto ao abrir a porta.
O
homem olhou para o aparelho à direita e arqueou uma sobrancelha. Parecia estar
funcionando normalmente, como as agitadas fitinhas vermelhas presas na grade
indicavam.
Passou
o dedo indicador por dentro da gola da camisa buscando uma folga. O calor
continuava. Percebeu, finalmente, que o desconforto térmico vinha da troca de
olhares nada gentis das duas figuras à sua frente.
Uma,
sentada, apertava o tecido da saia marrom listrada. A outra, em pé, tinha
acabado de fechar calmamente um pequenino estojo de maquiagem.
Era
a primeira vez que Nobuaki Hiyama recebia Atsuko Kaioh. Ficara surpreso quando
passaram a ligação mais cedo e uma voz suave, porém firme falou,
identificando-se. Involuntariamente, o homem ajeitou o nó da gravata, como se a
mulher pudesse vê-lo. Repetiu o gesto quando ela pontualmente apareceu em sua
sala. Pessoalmente, “mais séria e ainda
mais bonita”, constatou Hiyama.
Para
Michiru, ver a mãe depois da saraivada de palavras na mansão, era magoar uma
ferida em processo de cicatrização. Doía. E de vez em quando sangrava. A
violinista não notou sinais de qualquer fraqueza na mulher. De saia e blazer
azul-marinho, blusa branca e um coque bem-feito, Atsuko quase sempre conseguia
mascarar aquilo que não desejava demonstrar, especialmente na frente de
estranhos.
-
O que está fazendo aqui?
-
Vim resolver para onde os comunicados do colégio serão enviados. – disse a
mulher educadamente, em tom quase displicente, guardando o estojinho na bolsa.
Michiru gelou.
-
A senhora sabe muito bem... – a garota olhou de soslaio para a mãe e em seguida
para o diretor. Esforçava-se para medir as palavras.
-
Não, desconheço o endereço do qual se refere...
-
Duvido muito. Sempre foi espetacular em descobrir coisas.
-
Essa conversa não precisa ser desagradável, Michiru.
-
Tem razão, então ela termina aqui.
Nobuaki
tinha o cenho franzido, confuso com o desenrolar do diálogo. Parecia ter
entrado no meio de um filme estrangeiro. Sem legendas. Desacreditou na hostilidade
presente no tom de voz de Michiru, sempre tão polida. Estranhou ainda mais que
se dirigisse assim à sua mãe.
A
violinista fitou a mulher por alguns segundos antes de virar as costas e se
encaminhar até a porta. Girou a maçaneta.
-
Seu pai precisa de um favor seu no momento.
Parou.
[...]
Alheias
ao desagradável clima na diretoria, Yuko e Haruka conversavam.
-
...E acho que o maior perigo da corrida em Mônaco foi lá para o final. – disse
a enfermeira com ar pensativo.
-
Ah, fala daquela ultrapassagem que quase me jogou fora da pista?
-
Não, do mar de meninas gritando seu nome na entrevista pós-corrida. Estavam
enlouquecidas. Pareciam ter ingerido algum comprimido ilegal e tomado umas
doses de vodca.
A
loira jogou a cabeça para trás, gargalhando.
-
Está dizendo que só assim pra torcerem por mim?
-
Agora que você falou... – a velocista pôs uma das mãos no queixo, relembrando.
-
Espero que nenhuma dessas tenha aparecido no hotel debaixo da sua cama à noite.
-
Debaixo não, mas em cima dela pude desfrutar de ótima companhia. – respondeu a
loira com um sorriso orgulhoso.
-
Estou confusa. Em cima da fã ou da cama?
-
Yuko-chan está curiosa sobre quem
esteve na minha cama?
-
Mal posso controlar minha ansiedade de saber, Tenoh. – retrucou Kimura. Os
olhos semicerrados e timbre sonolento.
-
Não era nenhuma fã. – respondeu sem rodeios.
-
Então deve ser por isso que há algum tempo não aparece aqui. Alguém conseguiu
finalmente te fisgar?
Yuko lançou um olhar
inquisidor com salpicos de malícia e não precisou que a loira esboçasse uma
única palavra, sua expressão já respondia.
- Eu jamais faria algo sem
sua permissão, Yuko-chan. – emendou,
encontrando na cantada um disfarce improvisado.
A
mulher segurou uma risada alta. Por alguma razão sentiu falta dos flertes mais
que manjados da corredora. Um número significativo das garotas do Mugen coraria
até os dedos dos pés, se ouvissem metade do que a adolescente tagarelava quando
estavam a sós. Contudo, tudo que a enfermeira fazia era ignorar e enxotar
Haruka da sala.
-
Eu tenho uma vacina que imuniza as pessoas das suas cantadas, Tenoh.
Haruka
estalou a língua entre os dentes, fingindo decepção.
-
Tudo bem. – suspirou – Contanto que você
não tenha sido vacinada...
-
Ela não vai gostar nada quando souber que você está brincando por aqui.
-
Ela?
-
Sua violinista.
O
sorriso maldoso de Haruka logo deu lugar a uma expressão séria e ela afundou na
cama soltando um muxoxo. Yuko suspirou e aproximou ainda mais seu banquinho da
cama. Não era incomum tomar por alguns minutos o cargo da psicóloga do colégio.
E sempre o fazia bem.
-
O que ouviu? – perguntou a loira mais à vontade na cama.
-
Tire o tênis do lençol, Haruka. – Kimura deu uma tapa no calçado e a
adolescente obedeceu fazendo uma careta. – Vocês chegam aqui comentando todo
tipo de assunto. Como “Não-sei-quem-senpai
estava lindo no intervalo!” ou “Viu as pernas de Não-sei-quem-chan na
natação?”. Estive pensando até em fazer um gráfico de popularidade, só baseada
nas conversas que escuto todos os dias, mas seria tachada de desocupada.
-
Não sabia que falavam tanto assim.
-
Essas últimas semanas foram bem agitadas. Levei um susto quando o professor
Izumida entrou aqui, o nariz e os lábios sangrando bastante. Mesmo no estado em
que se encontrava não parou de praguejar! Enfrentei quase uma hora de
reclamações enquanto fazia os curativos.
-
Levou uma hora pra fazer curativos?
-
Experimente aplicar pedacinhos de esparadrapo enquanto um homem daquele tamanho
gesticula e esmurra a cama. Estou começando a ter pena do time de beisebol
tendo que lidar com a fúria de Izumida-san.
Não é à toa que Ishikawa Takeo veio tanto essa semana aqui, anda com fortes
dores de cabeça.
Kimura
viu a adolescente franzir o cenho à menção de Ishikawa.
-
“Dores de cabeça”, sei... – disse a garota com desdém.
-
Não gosta de Ishikawa?
-
Você gosta?
-
Perguntei primeiro.
-
Não. – respondeu categoricamente.
A
mulher viu a adolescente emburrar-se e percebeu o sintoma de imediato: Ciumeira
Crônica. Imaginou que não fosse pela popularidade do garoto...devia ser outra
coisa. Ou alguém.
-
Entendo... – disse Yuko quase inaudível.
- Como assim, “entendo”? – a
loira arqueou uma sobrancelha e Kimura apenas sorriu.
-
O que aconteceu entre vocês?
Yuko
ficou tentada a perguntar se ele tinha roubado o lanche e empurrado-a do
balancinho, mas o assunto parecia mesmo incomodar a adolescente. A zombaria
poderia esperar um pouco.
-
Nada em especial... – disse a corredora com fraca convicção olhando para o
teto.
-
Ótimo. Então se me dá licença, eu vou...
-
Ele é irritante. – interrompeu Haruka e Yuko esboçou um sorriso. Deveria abrir
um consultório de terapia alternativa. Não cobraria por hora. Em geral, quinze
minutos eram mais que suficientes. Uma espécie de sessão psicoterápica em ritmo
drive-in de fast-food. – Ultimamente tem feito de tudo para me provocar,
principalmente depois que essa peça idiota começou. Ele...não desgruda de
Michiru. – continuou a garota, em tom aborrecido.
Era
a primeira vez que via a loira com ciúmes de alguém. Achou curioso. Lembrou-se tempos atrás de ter cruzado com
Michiru Kaioh nos corredores e ela mostrar o mesmo semblante de Haruka. O
problema é que o olhar gélido era dirigido à Kimura. Discretamente, mas era. “Adolescentes...” Yuko suspirou.
-
Ele participa da peça?
-
Sim. Ele é o par dela e...Ei! Não me olhe como se eu estivesse exagerando,
Yuko!
-
Mas se ele tem de fazer as cenas com Kaioh-san,
não vejo o que é tão absurdo. Você acha que ele quer algo mais?
-
Algo mais? Yuko, se Michiru fosse um bolinho, Ishikawa já estaria palitando os
dentes.
A
enfermeira deteve a risada.
-
Não acho que ela apreciaria essa...analogia. Tente mostrar para ele, então, que
há outros bolinhos disponíveis
-
Ele sabe que existe. Só não quer outro.
A
mulher fitou o chão por alguns segundos, pensativa e falou:
-
Não creio ser essa a primeira vez que algum rapaz se interessa por Kaioh-san. Estou certa? – Kimura viu a
adolescente cruzar os braços e assentir com a cabeça – Quando estamos em um
relacionamento, é impossível e nada saudável controlar os passos do outro. Se
há a tentativa é porque falta confiança, e se não existe esse item no
relacionamento, uma hora ou outra ele irá sucumbir. O que se pode fazer é
estabelecer uma base mútua de confiança, dar o exemplo e simplesmente esperar
que o outro faça o mesmo.
Kimura
pausou por alguns segundos, como se esperasse a mensagem ser absorvida pela
adolescente. Haruka, ainda deitada, enrolava a gravata verde entre os dedos.
Parecia ruminar o conselho.
“Yuko não entende que é nele que não
confio. Por outro lado, não deveria temer se confio em Michiru...”
-
E sobre Ishikawa? Afinal ele me provoca bastante.
-
Ignore-o. É um castigo poderoso.
-
Mas como? Ele para na minha frente e despeja uma série de piadinhas. – a garota
aguardou uma resposta, mas a mulher parecia dispersa. Fitava a janela com
atenção. Haruka seguiu o olhar da enfermeira, mas de interessante, só o vento
agitando algumas folhas da árvore. –
Yuko?
-
Sim? – respondeu quase surpresa, como se a garota tivesse acabado de entrar na
sala.
-
Uuuhhh, você é boa.
-
Obrigada, não é tão difícil.
-
Eu vou tentar seu...método. Se nada der certo, você sempre terá gazes e talas
aqui, não é? – falou exibindo um meio sorriso.
-
Não brinque com isso, Tenoh. Não pode simplesmente sair chutando o traseiro de
todo mundo que te provoca. Engolir alguns sapos não vai te matar.
-
Mas deixa um gosto péssimo na boca.
(continua)