sábado, 21 de junho de 2014

Capítulo 27 - Semente (parte 1)

Capítulo 27 – Semente (parte 1)

Poucas palavras foram trocadas no decorrer do dia. Em outro contexto, elas eram só triviais. Nesse, eram apenas aborrecidas, sem graça. Daquelas que você se obriga a falar quando divide um teto...

No final da tarde, as duas se concentraram em outras atividades pela casa. Michiru se acomodou na varanda, onde leu boa parte do roteiro da peça. Já Haruka, dedicou-se a separar alguns cd’s de música clássica para mostrar à Matsuda.

À noite, depois de lavarem e enxugarem os pratos do jantar, a corredora decidiu puxar conversa com Michiru. Qualquer assunto. Só queria ouvir sua voz... Pois, se sentiu extremamente incomodada estar do lado dela naquele silêncio, quebrado apenas pelos barulhos pontuais dos utensílios sendo guardados nos armários e gavetas.

- Já pensou na desculpa que vai dar aos professores amanhã? – perguntou a loira em seu tom mais casual. Quando a garota olhou-a meio confusa, Haruka apontou para a apostila de inglês em cima do sofá. – Pelo menos essa lição levaremos amanhã. O resto não dá pra fazer sem o caderno. – completou a jovem.

- Ainda não sei o que dizer. Sem contar que o fato de nós duas estarmos sem as pastas vai gerar comentários. – respondeu Michiru, pegando sua própria apostila e sentando-se no chão perto da mesinha de centro.

Satisfeita de ouvir uma resposta não monossilábica da violinista, a corredora esticou-se no sofá, mais relaxada, antes de falar novamente:

- Bem, nós podemos matar aula.

- Não posso faltar outra vez. Sabe como os professores tratam aqueles alunos que faltam demais. As indiretas durante as aulas são muito irritantes.

- As broncas amanhã serão piores.

- Que sejam. Não vou fugir. – disse Michiru dando de ombros.

O gesto chamou a atenção de Haruka, que deu uma risadinha pela forma displicente mostrada pela violinista.

- Cuidado, Michiru. Continue se rebelando desse jeito, e será a líder delinquente do Mugen.

O comentário pareceu ter divertido Michiru, pois a corredora a viu dar um discreto sorriso. Encorajada, Haruka continuou falando:

- Se quiser um visual que combine com sua delinquência, é só amarrar o laço do seu uniforme em um dos braços... Ou melhor, como uma bandana! – disse a loira exibindo um sorriso assumidamente zombeteiro.

A violinista largou a apostila e cruzou os braços, mas não teve sucesso em esconder um sorriso.

- Haruka, se tem alguém que poderia ser a líder delinquente do Mugen, é você. Quer dizer, engolindo bilhetinhos na frente da professora, jogando bolas de basquete no rosto de outro... – falou ela, enumerando os atos nos dedos.

- Falando assim, parece que faço isso todos os dias. As duas coisas que você citou foram acidentes. – Haruka estreitou os olhos, fingindo estar zangada.

- Bem, o ano letivo é longo. – respondeu a violinista em tom desdenhoso. Haruka riu.

- Ah, é? Quer dizer que eu sou uma delinquente? Então eu tenho uma notícia pra você. – disse a loira, antes de fazer um gesto com o dedo indicador para que a outra se aproximasse.

Achando graça da situação, a violinista levantou e deu três passos na direção de Haruka. Com os braços ainda cruzados, ela se abaixou, fitou a loira e esperou a resposta com um leve sorriso.

A corredora estreitou ainda mais a distância entre elas, se inclinando para sussurrar no ouvido da violinista:

- Você parece não ter problema algum em dormir com uma, Michiru. De fato, parece gostar bastante.

Michiru tentou resistir. Realmente tentou. Mas, a voz naturalmente rouca de Haruka e seus lábios encostando de leve em seu ouvido foram demais para ela. Um conhecido arrepio percorreu seu corpo e suas bochechas coraram.

Haruka olhou a jovem de soslaio e se regozijou ao notar o rubor.

Michiru fez seu melhor para dar uma resposta à altura. Mas, com Haruka tão perto, tão quente, era difícil pensar em outra coisa a não ser beijar a loira. Contudo, detestando a ideia de ser vencida tão facilmente pela outra, a Sailor dos Mares limpou a garganta, antes de falar:

- B-Bem, talvez seja só minha maneira de convencê-la a sair desta vida de delinquência. – retrucou Michiru, esforçando-se para parecer séria e...falhando miseravelmente quando Haruka soltou uma risadinha e respondeu com uma largo sorriso:

- Por favor, continue me convencendo.

- Fazer sua lição é bom começo. – disse a violinista por fim, antes de se afastar e dar as costas, aproveitando para sorrir sem a outra ver. Já achara embaraçoso o suficiente ter se arrepiado e corado da cabeça aos pés na frente da corredora. Sabia que o ego de Haruka tinha se elevado a potências estratosféricas depois da conversa.

“Pelo menos consegui responder.” – pensou Michiru com um sorriso, se lembrando das outras vezes em que não pôde. Estava ocupada demais apreciando os efeitos que Haruka causava em seu corpo.

[...]

Michiru bocejou e virou mais uma página da apostila de inglês. Respondera vinte questões e ainda faltava cinco.

“Ainda bem que são objetivas.” – pensou a jovem, sentindo-se mais aliviada.

Na última questão, porém, ela se deparou com um texto mediano para traduzir e daí, marcar a resposta correspondente. Cansada, Michiru deu um longo suspiro antes de perguntar à velocista:

- O que respondeu na última questão, Haruka? – indagou a violinista, fatigada demais para se importar com eventuais piadinhas por sua preguiça momentânea.

Estranhando não haver resposta, Michiru espiou o sofá e viu que a loira adormecera, com a apostila aberta sobre o peito. Levantando-se, a violinista foi até a parceira e agachou, apreciando a tranquilidade com que a outra dormia.

Sorriu ao ver as longas pernas Haruka encolhidas, acomodando-se do jeito que dava no sofá. Tirando cuidadosamente a apostila em cima da loira, Michiru passou os dedos levemente pelo rosto de Haruka, tentando acordá-la da forma mais gentil possível.  Quando tudo que a jovem fez foi se remexer e encolher-se no sofá, a violinista suspirou e foi até o quarto buscar um lençol para cobri-la.

Quando já estava voltando para a sala, a Sailor dos Mares sentiu sua mão formigar. Sua expressão ficou tensa, pois sabia o que viria a seguir: um brilho suave contornou seus dedos e se intensificou mais e mais, até o Aqua Mirror materializar-se em sua mão. Como de hábito, ele exibia imagens enevoadas, que apareciam e desapareciam. Quando ficaram mais nítidas, Michiru sentiu um frio na espinha:

“O beco! Esqueci completamente de voltar lá e investigar!” – constatou Michiru.

Instintivamente ela foi até Haruka e cutucou-a. Nada. A loira resmungou algo ininteligível e afundou ainda mais o corpo no sofá, continuando a dormir. Michiru ponderou por alguns segundos se devia insistir.

- Você parece tão em paz, Haruka. Eu seria cruel por tirá-la de seu tranquilo sono, não seria? – sussurrou a violinista, enquanto esticava o lençol sobre o corpo da outra garota.

A jovem olhou para o relógio e já passava das dez da noite.

“Não deve ser nada tão grave, deve? Quer dizer, eu só senti uma presença estranha na hora e o Aqua Mirror não mostrou nenhum demônio. Só uma estreita rua, muito parecida com a que vimos mais cedo. Talvez nem haja nada, mas uma investigação nunca é demais.”

Decidindo não acordar a parceira, Michiru colocou a caneta de transformação no bolso da calça jeans, escreveu uma curta mensagem em um post-it e o colou na porta, para que Haruka lesse se acordasse. Fechando a porta devagar, a Sailor dos Mares saiu em mais uma missão.

“Com sorte, ela ainda vai estar dormindo quando eu chegar.” – pensou a violinista.


(continua)

terça-feira, 20 de maio de 2014

Capítulo 26 - Concha

Capítulo 26 – Concha.

Chegando ao apartamento que dividia com Haruka, Michiru mal ouviu o porteiro falar. Imaginando ser o cumprimento habitual, apenas meneou a cabeça em retorno. As Sailors entraram no elevador e não trocaram uma única palavra durante o trajeto. De repente, aquele cubículo pareceu muito menor do que era. Estava sufocante.

Impaciente, a violinista tirou a chave do bolso da saia, abriu a porta e entrou sem olhar para trás. Em seguida, foi até a cozinha em busca de um chá gelado. Escutou Haruka fechar a porta e o som de seus passos se aproximando. A corredora se aproximou dela devagar e recostou-se na pia. Estavam a um palmo de distância.

Michiru tomou um gole do chá e, nesse momento, apreciou o silêncio entre elas, desejando não precisar discutir as contrariedades vivenciadas mais cedo. Pela primeira vez a violinista refletiu sobre as desvantagens de dividir o mesmo teto. A impossibilidade de se isolar podia ser bem frustrante.

Quando morava com seus pais, era fácil encontrar um lugar aonde pudesse ficar sozinha. Havia tantas salas e quartos naquela mansão. Cômodos belissimamente decorados... E tristemente vazios. Nem mesmo quando seus familiares visitavam, a casa parecia cheia. Com tanto espaço, a violinista certamente possuía cantinhos favoritos.

Era no escritório de seu pai que se refugiava quando seus primos mais velhos a aborreciam. Já no gazebo do jardim, costumava ler ou pintar. A fonte, perto desse mesmo local, geralmente melhorava seu humor. Ouvir a água jorrando lhe trazia uma imensa paz... Quase tão bom quanto ouvir as ondas do mar banharem a areia.

Tais lembranças trouxeram conforto momentâneo, e Michiru fechou os olhos por um momento, querendo prolongar a sensação.

- Dia difícil, huh? – perguntou a loira baixinho, fazendo com que sua voz saísse ainda mais rouca.

Michiru precisou se conter antes de responder prontamente um “Não imagina o quanto”. Além do sumiço de seus pertences, ela ainda tinha uma rusga mal resolvida com a corredora. Entretanto, fora a conversa com a mãe que colocou o tempero final em seu estado atual de amargura.

Notando o desconforto da garota, Haruka desencostou-se da pia e sentou em uma das cadeiras da mesa. O gesto pareceu ter surtido algum efeito sobre Michiru, que relaxou levemente os ombros. Encorajada pela linguagem corporal da outra, Haruka tentou abordar o assunto de outra forma:

- Numa escala de 1 a 5, o quanto chateada está comigo? – perguntou ela em um proposital tom divertido, tentando manter a conversa leve.

- Três, eu diria. – respondeu a outra sem rodeio, encarando-a.

- Certo. – a loira esfregou a nuca e riu nervosamente. – Mas há algo mais, não é? Você voltou estranha do intervalo. Não quer me contar o que houve?

Quando Haruka viu a garota desviar o olhar, soube que seus instintos estavam certos: havia outra coisa incomodando a Sailor dos Mares. A árdua tarefa era saber o quê; pois Michiru ainda estava aborrecida com ela.

- Nada de importante. – respondeu Michiru baixinho, imediatamente se dando conta que não fora uma resposta convincente.

- Qual é, Michiru... Algo aconteceu, eu só não sei o que foi. Não confia em mim?

A pergunta foi como um estalo perto do ouvido. O questionamento trouxe de volta o assunto interrompido mais cedo, quando a velocista simplesmente abandonou-a no intervalo, correndo como se estivesse em uma maratona.

A violinista ouviu a loira suspirar e sentiu-se pressionada a responder.

- Eu poderia perguntar a mesma coisa. – falou Michiru, antes que pudesse conter a própria língua. Sabia que a conversa não estava indo por um bom caminho, mas de repente sentiu necessidade de despejar tudo que engolira mais cedo.

- Eu ficaria feliz em responder se soubesse do que está falando.

- Falo da história do piano. Aposto que inventou isso só para ficar de olho em mim no ensaio com Ishikawa-san.

- E-Eu estou cuidando da sonoplastia, Michiru! – exclamou a corredora, endireitando a postura tentando parecer mais confiante. Mas, o tom desesperado com que respondeu só aumentou o aborrecimento da outra garota. – Achei que seria uma boa ideia criar algo pra peça. – completou.

- Sabe... – falou Michiru com uma calma forçada que Haruka conhecia bem. – É estranho você vir falar de confiança, quando uns minutinhos sozinha com Matsuda-san fizeram seus olhos montarem acampamento nas pernas dela.

Haruka fez seu melhor para conter uma risada. Pelo menos isso ela poderia esclarecer sem problemas.

- Ainda está brava com isso? Você está equivocada, Michiru. Eu posso explicar.

- É mesmo? Devo deixar a porta aberta para você sair correndo como da última vez? – perguntou a violinista cruzando os braços.

Com isso, Haruka fechou a cara e Michiru manteve o olhar acusador. Ainda tentando entender como o clima entre as duas havia piorado, a velocista levantou-se e andou até a entrada cozinha, de onde falou:

- Parece que não importa o que eu diga, serei sempre culpada. Seja lá do que for.

Percebendo que Michiru continuava impassível, Haruka saiu da cozinha e atravessou a sala, embrenhando-se no quarto. Teve vontade de pegar a chave do carro e dirigir até que a adrenalina da velocidade substituísse sua raiva. Mas, se fizesse isso, daria mais munição paras as acusações de Michiru. Em vez disso, foi ao quarto pegar algumas peças de roupas e se trancou no banheiro. Talvez, uns bons e relaxantes minutos dentro da banheira a ajudassem encontrar a melhor maneira de resolver aquele desentendimento.

Além disso, era óbvio que a violinista não queria conversar. Era quase como se...

“Como se ela estivesse usando uma briga idiota pra desviar a atenção do real motivo de seu aborrecimento. Sim, pode ser isso... mas o que será que tanto a preocupa?” – pensou a loira, deixando o corpo afundar na água quente da banheira.

Em sua convivência diária com Michiru, Haruka sabia que a garota tinha tendência a se isolar. A Sailor dos Mares podia ser insondável quando queria.

Nesses momentos, era como se Michiru se deixasse tragar pelas profundezas do mar, descendo lentamente enquanto observava a luz do sol ficar cada vez mais e mais distante... Até que uma mão – com dedos longos e delicados – cortasse a água e puxasse-a de volta para a superfície.
   
(continua)