domingo, 10 de abril de 2011

Capítulo 17 - Resolução

Capítulo 17 – Resolução.

Uma gota caiu novamente dos cabelos dela, formando círculos progressivos na água parada da banheira. Encarava suas mãos, dedos finos e agora enrugados pelo tempo que ficara com eles submersos. Estava sentada, imóvel, com a cabeça pendida. Seu reflexo aparecia e desaparecia nos intervalos em que a gotícula deslizava pela mecha loira e caía. Nem imaginava quanto tempo estava lá. Planejara simplesmente comer algo e correr por uma hora. Talvez uma hora e meia. Depois tomar um banho. Mas sua indisposição só deixou-a cumprir a última ação listada.

Passou a mão pelos cabelos molhados, irritada por um motivo há horas esquecido. Lembrou de Takeo, que encontrara mais cedo e suspirou; não era isso. Não era por ele.
Antes fosse.

“Polícia enfrenta pressão da família Kaida, inconformada com as inconclusivas declarações do chefe...”

Sentiu uma pancada no estômago e seu corpo parecia ter virado chumbo. Precisava fazer isso. Precisava de resolução. Para tanto precisava levantar... mas tudo lhe doía.

Mandando ao inferno sua morosidade, enxugou-se, vestiu-se e minutos depois encontrou outra jovem lendo um livro no sofá da sala.

- Vou correr um pouco.

Mentira Haruka, contudo se reprovaria mais tarde por isso. Michiru observou-a brevemente por cima do livro.

- Hai. – respondeu antes de continuar sua leitura.

A loira pegou a chave do carro na cômoda próxima da porta e enfiou num dos bolsos. Entretanto, a voz da violinista a fez parar quando já ia girar a maçaneta da porta.

- Cemitério Kobayashi... – disse Michiru brandamente.

Haruka não saberia dizer se fora um sexto sentido excepcional ou um palpite realmente inspirado. O fato é que sua expressão denunciara que a outra tinha acertado.

- É óbvio assim?

- Pra mim, talvez.

- Eu não demoro.

- Não precisa prometer nada.

E Uranus partiu. Vagou de carro por trinta minutos e encontrou uma pequena floricultura imprensada entre duas butiques. Uma senhora – em seus sessenta e sete anos – baixinha e magra estava compenetrada finalizando uma belíssima ikebana quando a loira adentrou a loja, fazendo o pequeno sino da porta tilintar.

- Bem-vindo! Posso ajudar? – disse a mulher com um largo sorriso, largando a tesoura no balcão.

- Ah... eu queria um arranjo simples, algo bonito e discreto. Esse que a senhora fez me parece bom... – disse a loira tocando levemente nos galhinhos da peça. – Está à venda?

- Sim, claro. – respondeu a mulher simpaticamente. – Então, quem voltou de viagem?

- Como? Não entendi.

- Esse arranjo é de boas-vindas, ainda vou acrescentar a plaquinha.

- Ah, entendo... Mas não é essa a ocasião.

- Oh... desculpe. Seria para a namorada? Tenho vários aqui e-

- N-Não... – interrompeu a loira sentindo as bochechas corarem.

- Para um amigo?

A velocista pôs um das mãos no queixo, em ponderação, para em seguida concluir com mais segurança.

- Seria mais...um pedido de perdão.

No apartamento que dividia com a outra guerreira, Michiru Kaioh parara sua leitura. Passou os olhos três vezes pela mesma linha e não absorvera nada. Pulou um parágrafo, colocou o marca páginas sobre a folha e fechou o livro.

Deveria ter ido com ela. Embora eu soubesse que se faria de forte, para não me preocupar. Bom, há também aquele orgulho quase inquebrável, aquela pose de Cavaleiro Solitário, mas não acho que esse seja o caso realmente... Será que dá tempo pegar um táxi e encontrá-la?
Acalme-se, sua idiota.
Talvez ela tenha que passar por isso sozinha... vai fortalecê-la. É... creio que sim.
Eu só queria segurar a mão dela na hora... porque ninguém segurou a minha quando estive do outro lado...
Pensando bem, eu desejei que não vissem meu rosto cheio de culpa naquele dia. Haruka... espero que perceba que a palavra aqui não é insensibilidade. Não mesmo.
Nesse momento, estou aqui, olhando Tóquio da varanda, fazendo um esforço titânico para não abraçá-la enquanto olha a lápide.
Compre flores, ele vai gostar...

O vaso era preto e comprido. A loira entrou no carro e o posicionou cuidadosamente no banco do passageiro. Antes de colocar a chave na ignição, fitou mais uma vez o objeto e pareceu-lhe que sua dúvida em prosseguir era desonrosa.

“Que bela guerreira, não?”

Vinte minutos depois a loira estava no Kobayashi. Andou entre árvores e lápides de granito, algumas notavelmente mais simplórias, cobertas com uma espécie de limo tornando o granito esverdeado. A corredora suspirou. Uma lanterna em mãos tornaria a procura mais rápida. Contudo, a mudança do vento trouxe um agradável cheiro de alfazema, que lhe preencheu os sentidos. Guiando-se pela fragrância, chegou a uma lápide mais elaborada, mas o granito enegrecido e a pobre iluminação do lugar dificultavam-lhe a leitura dos ideogramas nas colunas. Sobre uma pedra polida ao chão, viu dois incensórios e um belo arranjo de flores.
Curvando-se, tocou na lápide com a ponta dos dedos, sentindo os símbolos numa leitura táctil improvisada. Dedilhando o final da coluna, sentiu o corpo tremer.

“Kaida. Ryuichi Kaida.”

Reparando melhor, as rochas que compunham o túmulo não estavam desgastadas e os incensos queimavam ainda nas pontas. Provavelmente um familiar estivera ali há poucas horas. Uranus olhou em volta e era a única lá. Agradeceu mentalmente. Agachou-se para depositar o vasinho preto, no qual flores pequenas de jacinto roxo saíam dele, num contraste premeditado e cuidadoso da senhora florista.

Haruka olhou de perto as outras flores deixadas e inspirou profundamente o aroma do incenso.
Foi aí que aconteceu.

Imagens borradas, turvas, dançaram na sua frente. O contorno da lápide ficou ondulado e um líquido escorria pelo seu rosto. As bochechas identificaram como quente, sua boca como salgado. As lágrimas simplesmente caíam e a loira levou uma das mãos aos olhos, numa tentativa frustrada de pará-las.
Uma brisa veio em seu socorro e agitou seus cabelos. Um afago talvez...

A garota então se levantou, secou as lágrimas e pensou que essa era a última oportunidade de velar alguém que já partiu. A incerteza de que aquele seria o último a ter a juventude interrompida, pareceu acomodar-se dentro de si.

Só que para fazer uma nova vítima, o Mal precisaria passar por ela. Por elas. Por um escudo invisível, composto por tudo aquilo que um defensor acredita. Chamassem de brio, honra ou qualquer frase feita vociferada por Paladinos lendários. No fim, só palavras. Todavia, a vontade de praticá-las... fazia toda e necessária diferença...
Era tolice denominar-se guerreira se não podia suportar o que acabara de vivenciar.
Fez-se de forte. E creu nisso.
Que viessem as sombras.
Estava esperando.

“Obrigado, Neptune.”

(continua)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Capítulo 16 - O inferno de Uranus


Capítulo 16 – O inferno de Uranus.

Dois dias passou-se desde a batalha no parque. Dias absurdamente lentos e abafados. Naquela manhã na rua, viam-se estudantes andando à sombra de árvores ou protegendo-se do implacável sol, tendo as mochilas pretas sobre as cabeças.

A duas quadras do colégio Mugen, Haruka afrouxava a gravata verde com listras azul escuro, enquanto, ao seu lado, uma garota de cabelos esverdeados levava discretamente um lencinho branco à testa, livrando-se do suor.  

Como em outros colégios, o Mugen contava com uniformes para os dias calorentos. As meninas usavam uma blusa branca com mangas curtas e uma saia marrom centímetros acima do joelho. Para os rapazes, a única diferença estava na camisa, também branca com mangas encurtadas, contudo mantinham a gravata verde listrada. Guardando o pequeno tecido no bolso da saia, a violinista apressou-se para acompanhar a parceira que caminhava ligeiro e de modo levemente irritado. Michiru suspirou. Tinha conhecimento que o sol estava em segundo lugar na lista de incômodos da loira.

O grande destaque da mídia era o caso do garoto morto em um parque sob circunstâncias desconhecidas. A polícia parecia não possuir dados conclusivos do ocorrido, mas o chefe do distrito encarregado da investigação dera uma entrevista estapafúrdia a um jornal, ligando a morte do rapaz à Yakuza. Curiosamente, depois da tal declaração ele logo retificou o comentário, afirmando agora um possível ataque de gangue adolescente.
O olho esquerdo ligeiramente roxo do homem não passou despercebido pelos leitores...

- Esse chefe de polícia é tão idiota! – disse Rumiko, passando um jornal para uma menina ao lado – Olha só esse olho roxo, isso que dá ficar espalhando boatos sobre a Yakuza.

- Mas é tão estranho o que houve com aquele garoto, não é? – respondeu Yuna desamassando o jornal e ajeitando os óculos para ler a notícia.

Chegando aos enormes portões do Mugen, Haruka adentrou apressada esbarrando na pequena Yuna, que deixara o jornal cair. A loira apanhou o impresso e leu brevemente a manchete, empalidecendo ao visualizar uma das fotos na matéria: o chão do parque estava rachado e exatamente onde a fissura acabava, havia algumas manchas vermelhas.

Os olhos de Uranus iam de canto a canto lendo pedaços da notícia e atentando as fotos.

“Chefe Genma Masayo convoca nova equipe de sismólogos a fim de esclarecer definitivamente as rachaduras no...”

“Parque Hoshi está interditado por medidas de...”

“Polícia enfrenta pressão da família Kaida, inconformada com as inconclusivas declarações do chefe...”

O estômago de Haruka revirou. Inconscientemente levou uma das mãos a boca enquanto a outra amassava ligeiramente o jornal. 

- “Kaida...família Kaida... é a família dele...”

A corredora tornou a olhar o impresso e reparou em uma foto mais abaixo na matéria. Era do chefe de polícia. O rosto macilento estava quase coberto pelos microfones dos repórteres, que travavam um duelo de perguntas. A legenda da imagem dizia que a garota encontrada estava bem, saíra só com alguns hematomas. Já o rapaz apesar de ter vários cortes, morrera de asfixia.
A loira prendeu a respiração. “Asfixia?”

Lembrou do dia em que encontrara o menino magrinho no autódromo, curvado com a mão no peito, parecia lhe faltar o ar. Isso indicava que talvez o monstro do parque tivesse estrangulado o jovem antes de ser destruído por ela. “Será?”

Suas indagações agora estavam repletas de “se”. Se ele morrera do modo como o jornal descrevia, seu golpe não fora fatal para o garoto e sim para a criatura. A nova informação lançara um fiozinho de alívio sobre seu peito, mas ainda sentia-se sufocada e extremamente perdida com tudo aquilo.
A expressão da loira ainda era tensa, quando Yuna a olhou e em seguida para o papel amarrotado em sua mão. Confusa, perguntou:

- Ei, o que houve Tenoh-kun? Você está bem? Está tão pálido... por acaso... por acaso era parente seu?

Entretanto, antes que pudesse responder, a loira viu dedos finos tirarem a bola amassada de jornal de suas mãos, ajeitarem o papel e devolverem à curiosa Yuna.

- Michiru...? – disse Haruka, parecendo acordar repentinamente de um péssimo sonho.

- Vamos entrar, Haruka. O sinal já vai tocar. – respondeu a violinista, sorrindo brevemente – Bom dia, Yuna-san.

- B-bom dia... – disse Yuna refreando o desejo de repetir a pergunta ao ver a colega de cabelos esverdeados.

Ao sinal, Rumiko e Yuna entraram no Mugen trocando olhares inquisitivos pelo comportamento das duas colegas. A loira estava demasiadamente séria, enquanto a violinista parecia não calar-se durante o caminho até a sala de aula.

Fora notável como aquela manhã se arrastou e muitos comentaram como era possível ter Educação Física, com o sol fritando as solas dos tênis. Estranhamente, o professor Izumida aparentemente estava imune ao absurdo calor. Mais de uma vez, ordenou que dois rapazes e uma garota dessem cinco voltas na quadra azul, pois, anteriormente os três resmungaram algo como:

“Agora o diploma em Educação Física exige experiência em torturas? Sente só o calor!”

O bom condicionamento físico de Michiru proveniente da natação, não adiantou tanto na aula. Levantou a mão duas vezes pedindo permissão ao professor para beber água. Na terceira, o homem apitou tão de repente que Seiji, um garoto corpulento de sobrancelhas grossas, assustou-se e tropeçou nos próprios pés.

- Já chega! – vociferou Izumida Daisuke, um homem alto e intimidante. Seu maxilar bem definido, os olhos miúdos e a postura perfeita lhe davam um ar de um militar desertor, que por curiosidade aventurou-se na profissão de professor de Educação Física. E que um número considerável de alunos, afirmariam sem pestanejar que esse não era seu talento. Definitivamente.

- A cada dois minutos vocês interrompem os exercícios para beber 20 litros de água ou para... desmaiar. Ora, levante daí Saito! – Izumida apitou mais uma vez e Haruka tapou os ouvidos. – Masato e Ryou, levem Saito para a enfermaria e voltem para cá.

- Sensei, eu sinto que daqui a 30 segundos todos nós desmaiaremos, então por que não encerra a tortura, digo, a aula? – disse Haruka, enxugando a testa com uma toalhinha branca, já quase encharcada de suor.

A ironia da loira, somada aos risos dos colegas, só fizeram saltar mais duas ou três veias nas têmporas de Izumida. A passos largos, o homenzarrão se aproximou da velocista, que o olhava sem receio algum. Um fato espantoso se considerarmos que sua cabeça batia no queixo do professor.

- Você parece estar divertindo seus colegas, Tenoh. Se acha engraçado? – Izumida encarou-a, ajeitando a postura. Parecia mais alto ainda.

- É que meu senso de humor melhora quando estou derretendo e prestes a desmaiar de calor... – os olhos verdes encontraram os castanho-escuro do homem e logo o silêncio na quadra tornou-se intragável.

- Sensei, o calor deixa realmente todos irritados, então seria melho-

- Melhor seria você dar cinco voltas na quadra, Kaioh. – cortou bruscamente o professor. Contudo, antes que a violinista ou até mesmo a corredora pudessem retrucar, a voz de Ishikawa Takeo interrompeu-as.

- O jogo contra o colégio Shirakaba é daqui a uma semana, sensei. Se o senhor quiser a equipe de beisebol inteira até lá, é melhor finalizar a aula agora. Saito já foi levado para a enfermaria, e o senhor sabe que ele é o nosso melhor batedor.

O tom do rapaz não era imperativo, mas sem dúvida firme. Haruka o olhou de esguelha e percebeu que a sombra do professor a descobria, ele agora andava silencioso em direção a Takeo. A loira até pensou em distrair o homem para que a bronca no garoto fosse esquecida, mas não gostava de Ishikawa para tanto...

- Ishikawa... – falou Izumida já próximo do rapaz – Esteja na minha sala no fim das aulas. Vocês... – dirigiu-se aos demais alunos, ainda silenciosos – estão dispensados. Na próxima aula vamos correr pelo bairro, podem ir agora.

Evitando encarar o professor notavelmente irritado, os alunos se apressaram a sair da quadra escaldante. Temiam que o homem mudasse de ideia e os mandasse fritar bolinhos de arroz no chão. Como ainda faltavam quinze minutos para o término da aula, muitos correram e foram tentar se refrescar no grande bebedouro perto da quadra. As doze torneiras foram disputadas a tapa e empurrões.
As salas no térreo próximas ao bebedouro, de tão abafadas, estavam com as janelas escancaradas. Dois professores surgiram furiosos pedindo silêncio à classe de Haruka, mas desistiram quando viram os adolescentes completamente absortos, encharcando toalhinhas de água e colocando-as no rosto como beduíno.

A violinista, conseguindo finalmente uma torneira, molhou sua toalhinha e esfregou o pescoço, sentindo-se melhor com o pouco vento que batia em sua pele. Repetiu o ato, molhando, dessa vez pressionando levemente o paninho na testa da loira, que agradeceu.

- Ora, só Tenoh-kun ganha toalhinhas no rosto, Kaioh-san? – perguntou Takeo, surgindo atrás de Haruka que se virou para fitar o rapaz.

- Bom... – começou Michiru, com um sorriso – se você olhar para trás... – apontou – Há uma porção de garotas com toalhinhas, querendo sua atenção.

O rapaz virou-se e um grupinho barulhento de meninas acotovelava-se, cada uma querendo sua chance de refrescar o garoto. Com um sorriso, Takeo curvou-se rapidamente, agradecendo e aceitando uma das toalhas. Então, enquanto limpava o rosto, a violinista falou:

- Acho que se você não tivesse falado naquela hora com o sensei, sobre o tal jogo, eu estaria em coma de tanto correr e Haruka iria passar umas horas na sala de Izumida-san... Então obrigada, Ishikawa-kun.

Três reações seguiram depois da frase: Dois sorrisos e um punho cerrado. Os olhos de Haruka faiscavam e Michiru pôs-se a apagar mentalmente o “kun” que tinha lhe escapado.

- Só “Takeo” está bom, Kaioh-san. – disse o rapaz, devolvendo a toalha à menina esquálida, agora frustrada por ter emprestado. A atenção do garoto estava totalmente voltada para a violinista. – E sabe, não foi difícil convencer o Izumida... ele odeia o professor de Educação Física do colégio Shirakaba! Está ansioso pra vencê-lo no beisebol.

- Verdade? – perguntou a Sailor dos Mares, parecendo realmente interessada. Se era fingimento, a garota disfarçou bem. Pois até a velocista piscou confusa com a fluência do papo. – Mas por que eles se odeiam?

- Dizem que os dois brigaram há tempos por uma mulher e o sensei do colégio Shirakaba levou a melhor. – respondeu Takeo – Parece que o outro professor meio que... roubou a garota de Izumida. E o que mais me impressiona na história, é o fato de que alguma garota namorou o Izumida.

Michiru riu e Haruka optou por molhar mais uma vez o rosto com a toalha.

- Saito conhece a história melhor que eu... – continuou o rapaz – Por falar nele, vou vê-lo na enfermaria. Essa demora dos três lá tem nome, sobrenome e cargo...

- Enfermeira Yuko? – indagou Michiru.

- Sim, ela. Ah, Tenoh-kun também costuma demorar quando vai lá, não? – perguntou Ishikawa com a naturalidade de quem falava da previsão do tempo.

O modo como ele despejou a informação irritou a loira, mas não tanto o fato de ser a mais pura verdade. Apreciava bastante a companhia de Yuko Kimura, estava na sua lista mental de mulheres atraentes.

A Sailor dos Mares fitou-a com nítido interesse, esperando uma resposta que não veio. Naquele momento, tudo que a corredora desejava era sumir do colégio. Não sem antes pulverizar Takeo e raptar Michiru. Controlando-se, forçou um sorriso e falou:

- Você não tinha que ver seus amigos? Yuko-san deve estar bem ocupada pra ficar jogando conversa fora com eles...

Takeo riu, assentindo. Já Neptune parecia um tanto surpresa pelo autocontrole da parceira. Embora, a linguagem corporal fosse contraditória. A velocista ainda apertava um dos punhos.

- É verdade. – disse ele – Ah, Kaioh-san! Lembrei que preciso falar com você depois.

- Sobre o quê? – perguntou a própria.

Mas o sinal do Mugen tocou, anunciando o término da aula de Educação Física. Takeo fez um gesto que depois conversariam e saiu correndo para o bloco onde ficava a Enfermaria. Os demais alunos dirigiram-se a um prédio próximo, onde ficavam os vestiários. A violinista deu alguns passos, acompanhando os outros adolescentes, mas sentiu a loira pegar-lhe a mão e parou. A velocista estava séria e olhava-lhe diretamente os olhos azuis. Um arrepio percorreu a nuca da jovem mais baixa e percebeu que estavam a sós. Sem entender, Neptune ia arriscar uma pergunta quando Uranus começou a andar rapidamente, ainda segurando a mão da outra.

- E-Espera Haruka! Onde estamos-

Contornaram a quadra e estavam agora numa sala, muito semelhante a uma garagem. Mesmo escuro, a violinista notou que era o local onde armazenavam os materiais de Educação Física. Ainda em silêncio, a corredora levou uma das mãos à cintura da outra e puxou-a para perto com vontade. Surpresa, Neptune procurou os olhos de Uranus e tentou decifrar aquela atitude.

Ciúmes?” Foi o que lhe ocorreu. Sentiu as mãos quentes da loira em seu rosto, para em seguida seus lábios encontrarem os dela. Michiru retribuiu os beijos sôfregos da amante, rindo de si mesma por pouco se importar se a situação fazia sentido. Apenas quando a boca da loira abandonou a dela e se aventurou pelo seu pescoço, foi que a Sailor dos Mares interrompeu o ato. Ainda que a contragosto. Se começassem algo mais não saberia se poderia parar.

Com expressão interrogativa, afastou-se um pouco, fitando a loira; agora órfã do contato aprazível do corpo da violinista.

- ‘Ruka, o que foi tudo isso? – perguntou Michiru, quase em sussurro.

- Bom... – respondeu Haruka sentindo as bochechas queimarem. – não podemos fazer isso em público, podemos?

- Eu...suponho que não.

Michiru estava tentada a perguntar se o motivo da ousadia se chamava “Takeo”, mas a voz rouca da velocista a fez desistir de qualquer confronto.

- Ele... – continuou Haruka –...quer o seu telefone.

- Quem?

- Ishikawa. – disse a loira entre dentes. – Ele quer pedir o número depois das aulas.

- Bom, vai ficar querendo. – falou a violinista com certo desdém e Haruka esboçou um sorriso, que não fora notado pela a outra. – Pra quê ele quer afinal?

- Faça silêncio. – sussurrou Uranus, puxando a violinista para os fundos da sala, onde se abaixaram atrás de um grande cesto com bolas de basquete.

Era o professor Izumida, segurando colchonetes azuis usados na aula. O homem empilhou os objetos e se aproximou dos fundos da sala, procurando o elástico que ajudava dobrar as peças. A cabeça da loira estava três dedos acima do cesto e Michiru apressou-se a empurrar para baixo. A velocista esforçou-se para encolher os ombros, mas sua estatura dificultava a tentativa. Espremidas entre o cesto e a parede, estavam tão coladas quanto gêmeas siamesas. E por um momento, Michiru pensou em recontar as costelas.

Izumida pegou mais dois colchonetes na entrada da sala e dessa vez tentou achar um espaço nos fundos, para largar os objetos lá. Os olhos miúdos fitavam os cantos do local e Haruka obrigou sua mente a criar desculpas, mas a dor nas costas só colaborou para invenção de bizarros palavrões.

O homem prendeu o colchonete com a faixa elástica e percebendo um vazio atrás do cesto, apenas ergueu a peça atirando-a lá, cobrindo o quadradinho entre a parede e o amontoado de bolas laranja.

As Sailors entreolharam-se assustadas, e a violinista apontou para o relógio, indicando que tinham perdido dez minutos da aula atual. O humor do professor estava azedo o suficiente para punir qualquer aluno que encontrasse fora da sala. E as garotas suspeitavam disso. Praguejando, a loira remexeu-se no cubículo, espiando pelas grades onde raios o professor se metera. Viu a silhueta de Izumida na saída, provavelmente dirigindo-se mais uma vez a quadra atrás do material restante. Aproveitando o ensejo, Haruka virou-se para a companheira e notou Michiru envolvida numa batalha pessoal.

O rosto de Michiru estava vermelho, as bochechas infladas e o nariz tapado com uma das mãos. A garota segurava um poderoso espirro, causado pela poeira e areia fina que caía do colchonete acima.

A corredora olhou mais uma vez entre grades e em seguida para a garota, que já roxa, liberou um nada discreto espirro. Izumida, já de volta e de frente para os fundos da sala, arregalou os olhos e usou o dedo indicador para limpar ligeiramente o ouvido esquerdo.

- Quem está aí? – perguntou o sensei engrossando a voz, enquanto dava alguns passos a frente.

Horrorizada, Neptune dobrou a cabeça entre os joelhos e aguardou desanimadamente a bronca. Em contrapartida Uranus, sentindo que a situação não poderia piorar, tateou no cesto por uma bola. Ato felizmente não reparado pelo homem, já que a luz natural que entrava na sala só iluminava um pouco mais da metade dela. A loira segurou a bola com as duas mãos e esperou que Izumida se aproximasse.

- Acho bom aparecer. – ameaçou o homem – Cinco segundos pra você mexer seu traseiro, onde quer que ele esteja encostado. Um... dois... trê-

O barulho foi estranho, como um baque de um melão que cai da cesta de frutas para o chão da cozinha. Haruka atingira em cheio o rosto do professor e Michiru achou ter ouvido um estalo. Mordeu o lábio inferior imaginando ser do nariz de Izumida. O impacto surpresa fez o homem recuar três passos e cair de costas inconsciente, com os braços e pernas abertos, tendo o rosto salpicado de sangue do nariz que estava tão torto e inchado, quanto o do lendário Akaoni.

- Oe, pensei que ele fosse mais durão... – disse Haruka aproximando-se do corpanzil.

- Haruka, você o acertou com tanta força que é um milagre ele ainda ter rosto. – falou Michiru, ainda perplexa agachando-se perto de Izumida.

- Não é pra tanto, Michiru.

- Como não? Ele está parecendo o Darumá.

- Pessoalmente, acho que ficou menos feio.

- Que horrível, Haruka... Ele não vai acordar tão cedo.

- Eu sei... mas eu te meti nessa confusão e precisava tirá-la.

Michiru sorriu, olhou de Haruka para o homenzarrão ao chão e disse:

- Sensei, se nos dá licença... temos trinta minutos restantes da aula atual. – confirmou consultando o relógio, antes de se levantar e seguir com Haruka, deixando Izumida num relaxante sono sem hora para levantar...

Com o sol dando uma generosa trégua e a última aula chegando ao fim, a irritabilidade diurna dos alunos foi se extinguindo, dando lugar a um clima mais amistoso. Na classe B do primeiro ano, alguns estudantes chegaram a unânime e telepática decisão de cochilarem nos minutos finais, mas despertaram de seus ócios rejuvenescedores com uma enfática reguada do professor de Biologia.

- Para casa quero as questões...

- Ahh sensei! – gemeram os alunos em coro e o professor pigarreou retomando a atenção.

- Cento e dez a cento e trinta. – informou o homem, olhando por cima dos óculos redondos.

Os resmungos foram abafados pelo sinal, dispensando os adolescentes às duas e meia da tarde. Haruka e Michiru recolheram o material e se dirigiram à saída, comentando que mais um dia quente assim e considerariam seriamente em trajar o uniforme de guerreiras ao invés do grosso tecido do Mugen Gakuen. Muito embora, soubessem que não haveria rigidez de professor que proibisse os estudantes salivarem pela exposição – nunca compreendida, inclusive – formidável das pernas das Sailors.

Já na rua, as garotas estranharam um fato: curiosamente, desde o embate na aula de Educação Física, não ouviram falar de Izumida pelo resto do dia. Ainda estava inconsciente?

A duas quadras do colégio, Haruka e Michiru pararam subitamente, pois entre o barulho de carros conseguiram distinguir seus nomes sendo pronunciados repetidamente.

A mais alta das jovens deu uma breve olhada para trás e continuou andando, dessa vez mais apressada. Aquele que a seguia era o agora ofegante Ishikawa Takeo. Curvado e com uma das mãos no abdômen, deu para perceber que o rapaz estava sentindo os efeitos de uma maratona forçada. A loira não pôde evitar sentir prazer ao ver o garoto forçar um começo de vômito garganta abaixo.

- Ishikawa-kun? – perguntou Michiru um tanto desconfortável de ver as caretas de Takeo, ainda incomodado com as dores no abdômen. A loira revirou os olhos e espreguiçou-se à visão.

- Ta...Takeo já está bom. – respondeu ele com um sorriso, inspirando profundamente antes de retomar a fala. – Eu fiquei de conversar com você Kaioh-san, daí esqueci que o sensei Izumida tinha me chamado a sala dele depois das aulas. Mas cheguei lá e não havia ninguém.

As duas trocaram rápidos olhares, num misto de culpa e – não declarada – diversão.

- De qualquer forma – continuou o garoto – desculpe se a deixei esperando.

- Ara, não foi nada. – adiantou-se Michiru, num tom cordial muito parecido com o de sua mãe, Atsuko, nas várias reuniões que presenciara na Mansão Kaioh. Odiou-se por estar relacionada à mulher daquela maneira. Supôs que a educação rígida que recebera levaria algum tempo para tornar-se apenas um resquício.

- Como não te encontrei nos outros dias, eu pedi a Tenoh-kun que me passasse seu telefone, mas ele respondeu que eu deveria pedir a você e que era errado dar sem sua permissão, Kaioh-san.

Haruka franziu o cenho a informação. Havia naquela frase – aparentemente –um reconhecimento de erro maquiando uma alfinetada à possibilidade de que o assunto não fora ainda discutido entre elas. Lembrando, a loira realmente evitara comentar a contrariedade dias atrás.

- Haruka não quis ser rude, Ishikawa-kun. – respondeu Michiru com um sorriso e viu a parceira fazer careta, discordando totalmente – É que eu realmente não me sinto à vontade de passar meu número a quem não conheço, gomen ne?

Era inacreditável como saindo da boca de Michiru, as palavras se tornavam mais suaves, como pedacinhos salivantes de chocolates Godiva, em vez de simplesmente uma indireta.

- Não, eu entendo. – explicou Takeo, fingindo não reparar no meio sorriso irritante da loira. – Mas é que de agora em diante seremos parceiros, né? Na peça que está por vir... Então, seria bom que trocássemos telefone, no caso de acontecer imprevistos e avisarmos o outro.

“Morra, seu projeto de placenta viscoso e desprezível!” – era tudo que Uranus podia pensar no momento. Analisando, realmente não teria porquê de Neptune evitar contato com o rapaz. Seriam parceiros. Eram Orsino e Viola, nada mais. Apenas dois alunos contracenando e provavelmente trocando gracejos no palco. Somente se comportando como amantes, porque assim a peça pedia.

“Eu te odeio, Ishikawa.”

Michiru pareceu pensar por um momento e sem coragem de olhar a outra Sailor, respondeu sem entusiasmo:

- Você tem razão. Tem papel e caneta?


(continua)