sexta-feira, 18 de março de 2011

Capítulo 15 – A culpa do discernimento

Capítulo 15 – A culpa do discernimento.

“Fale comigo...”

“Me deixa apenas dirigir.”

“Haruka...”

“Eu só quero dirigir...”

E a Sailor dos Mares se calou. Tentar qualquer diálogo naquele momento seria em vão. Queria explicar para a loira. Fitá-la e dizer que a culpa que carregava não era dela. Palavras que usou tempos atrás para si mesma. Precisou. Não havia ninguém na época que a consolasse. A morte de vítimas não é algo a ser esquecido com uma noite de sono. As missões nem sempre poupam a vida do possuído. O possuído, nunca poupa a vida de alguém.

Era uma questão de escolha. A culpa do discernimento. Uma vida tomada para que outras pudessem existir; um dilema que não deveria haver... não para aquelas guerreiras. Por isso a missão fora confiada a elas. Todavia, o coração procura brechas em momentos de dúvidas, arraigando remorso, complacência ou empatia; cegando aquelas que lutam, lembrando-as de sua humanidade.

[...]

Foi da velocista o último golpe. Levantou o braço direito e acertou o chão com força titânica. No parque, abriu-se uma fenda que percorreu vários metros até o demônio, já transtornado pelas ondas impiedosas de Neptune. A criatura debateu-se, recusando a deixar o corpo hospedeiro. A vítima, uma garota, caiu para o lado. Debilitada e ferida olhou o possuído... Seu namorado.
Oito meses. Exatos oito meses de namoro que seriam comemorados no parque onde se conheceram. A menina franzina riu mentalmente de si mesma. Mais de seu egoísmo por pensar momentaneamente no presente em seu bolso que não entregara. O conteúdo nem era relevante. Desmaiou enquanto via a Sailor dos Mares se aproximando, impassível.

Metros dali, Uranus estava imóvel, ainda na posição de ataque. Perplexa com a velocidade e poder de seu golpe, repleto de ódio à visão do monstro cravando as unhas pelo corpo da menina. Golpeou tomada pela força que há eras lhe fora passada. Uma era compartilhada com Neptune.

“Michiru.” – lembrou-se Uranus da parceira.

Mas assim como as palavras que, uma vez ditas não poderiam ser revertidas, o ato já se concretizara.
O demônio fora destruído.
A garota fora salva.
Quanto ao rapaz...

Devagar, Uranus foi se aproximando dos corpos e Neptune foi a primeira a falar, mas a loira não entendia o quê exatamente. Numa surdez pós-batalha, o som não chegava aos ouvidos da corredora. Os olhos ainda arregalados foram da garota ao chão às tentativas de Michiru para reanimar o corpo quase já sem vida do jovem.

“...ambulância!.”

Uranus captou finalmente o fim da frase de Neptune.

“Ouviu o que eu disse Uranus?! Chame uma ambulância!”

A loira procurou rapidamente no local um telefone público. E perto da roda gigante do parque em manutenção, achou um e ligou para a emergência. Os dedos trêmulos erraram na primeira tentativa, apertando outra tecla por engano. Não importava se era a primeira vez que via alguém morrer. O modo e a causa era o que lhe assombrava naquele momento.
A causa. O causador. A causadora. A culpada.

“Minha culpa. Ele está morrendo por minha culpa!”

“Uranus...”

Neptune ia começar um discurso que a velocista conhecia bem. Iria falar de prioridades, sacrifícios. Custos que uma missão daquelas teria. A loira pensou em se adiantar e gritar “Dane-se a missão!”

Mas ponderou. Fitou a bela a sua frente e a ouviu dizer que tinham feito o que era para ser feito, pois, se a criatura escapasse, tantas outras vítimas estariam no lugar daquela menina ao chão. E mesmo que o monstro resolvesse deixar o corpo do rapaz, levaria a vida dele. Alimentava-se disso, afinal. Neptune falou com segurança embora o tom de voz parecesse frio. Entretanto, a Sailor dos Mares era só mais consciente do que enfrentavam. E, principalmente do motivo pelo qual enfrentavam.

A sirene característica da ambulância trouxe o peso da realidade. As Sailors viram por trás de uma árvore os paramédicos pularem a cercazinha do escuro parque. As lanternas ajudaram a localizar as vítimas.
As duas Sailors, já com suas roupas usuais, se afastaram da cena. Michiru olhou mais uma vez para trás; Haruka continuou andando até o carro. As palavras simplesmente morriam antes que chegassem à boca.

Assim, sem trocar palavras, algum tempo depois as jovens desceram do carro e entraram no prédio. A violinista não pensou em voltar para o apartamento tão cedo. Na volta quis parar na praia; o mar costumava acalmá-la, talvez fizesse o mesmo pela corredora. Contudo, antes que falasse algo, perdera a coragem quando viu a parceira engatar mais uma marcha, perdida em conflitos morais...

[...]

- Vai comer algo, Haruka? – perguntava a violinista da cozinha em tom calmo. Quem sabe quebraria o clima sufocante formado no carro.

- Eu não estou com fome.

Michiru suspirava perto do fogão. Seria uma longa noite.

A reação aparentemente despretensiosa de Michiru estava longe de ser frieza ou menosprezo pelo ocorrido, quase uma hora antes. A violinista sabia, é claro, que Haruka não estava com fome ou queria conversar; e apostava que a loira nem quisesse companhia naquela noite. Mas iria se arriscar. Era-lhe preferível uma discussão com a velocista por aborrecê-la, do que vê-la encolhida silenciosa no sofá com um dos braços escondendo o rosto – assim estava.

- Sabe... – Neptune se aproximava da loira, que agora se sentava no sofá. Com o controle da TV em mãos, zapeava desatenta pelos canais – Morino-san, o cozinheiro da minha família, me deu este caderninho preto, cheio das minhas refeições prediletas, aqui tem a receita de todas... Não quer dar uma olhada? Talvez eu consiga fazer algo...

- Não, eu estou bem...

Mesmo poupando conversa, o fato de Haruka ter respondido a pergunta comprovava mais uma vez o quanto tinha mudado. Normalmente, depois de insistências, pegaria a chave do carro e dirigiria até que sua mente estivesse livre de pensamentos confusos; dirigiria até que não sentisse o asfalto nos 120 quilômetros por hora mostrados no velocímetro. A velocidade sempre fora seu elixir.

Mas por hora, tentava se contentar com um de seus jogos de corrida. Sentada no chão, olhava fixamente para a tela da TV, apertando os botões do gamepad de seu videogame. Neptune observou sua amante com um sorriso leve.
Calça jeans, meias cinza e uma blusa sem manga branca compunham o visual da corredora, simplicidade que atraía a violinista, tão acostumada a trajes formais. Silenciosamente fitou a loira antes de sentar-se ao seu lado e escutar os sons de aceleração, freio e batidas do jogo.

- Não precisa ficar aqui se não quiser... – disse Haruka, sem desviar o olhar da tela.

- Eu quero.

- Sei que não gosta muito desses barulhos...

- Não me importo.

- Então... quer jogar?

- Pensei que nunca fosse chamar. – sorria.

- Esse botão acelera, esse freia, esse aciona o Turbo...

- ‘Ruka, contente-se por eu não ter segurado esse troço de ponta-cabeça...

[...]

O rádio-relógio marcava exatamente duas e quinze da manhã. Levantando-se devagar da cama, a garota coloca os chinelos e abre a porta do quarto. Chegando a sala, guiava-se exclusivamente pelas silhuetas dos móveis, parcialmente iluminados por uma lua que invadia a varanda. Uma brisa agradável adentrava o apartamento, mas isso pouco fora notado.

Sem sono, caminhou até a cozinha onde abriu a geladeira. E ficou ali, olhando os produtos fixamente. Pegou um copo de água e o tomou até a metade, não estava realmente com sede. Puro hábito. Puxando uma cadeira, sentou. A madrugada parecia infindável. Rezou aos deuses que cria por costume pedindo consolo à família do jovem. Não lhe era comum rezar, mas sentiu de rogar a alguém mais forte que ela. Na entrada da cozinha, uma figura desviava momentaneamente sua atenção.

- Assistir alguém morrendo nunca é fácil, Haruka.

- E depois de quantos vou me...acostumar? – perguntava amarga, fitando o copo a frente.

- Não se acostuma. Do contrário, aí sim pode-se dizer que tem um problema. Somos humanos afinal.

- Talvez seja este o problema.

- O que quer dizer?

- Eu o ataquei por ódio.

- Por medo.

- Foi por ódio, quando o vi atacando aquela garota!

- Teve medo que ele a matasse... Estava claro que o demônio não ia ceder e largar o corpo do hospedeiro...

Michiru falou com propriedade, parecia um pouco mais experiente que Uranus em batalhas. Haruka quis concordar. Realmente quis. Mas a culpa não deixou. A loira fitou o chão antes de falar novamente.

- Não importa. Eu não controlei minha força...

- Você salvou a menina.

- Por que sempre há escolhas Michiru? Uma vida ou outra...

- Uma em prol de incontáveis...

- Quando ficou tão fria?

- Não fale sobre o que não sabe. – respondeu rapidamente parecendo aborrecida com a pergunta da velocista.

A essa altura Michiru dava as costas, caminhando até a sala para voltar ao quarto. Todavia, a impaciente Uranus a seguiu, segurando-lhe um dos braços, virando-a. As duas garotas agora se encaravam.

- E o que eu não sei?

- Uma...

- Uma... o quê?

- Sou responsável por uma morte... E quem sabe poderia ser a segunda no autódromo se você não estivesse lá... O rapaz teve força de vontade para se recuperar.

Perplexa, a loira soltou um dos braços da parceira, lembrando pedaços de sua discussão com a Sailor no autódromo. Neptune olhava o demônio caído e o rapaz inconsciente depois de seu Deep Submerge.

“Esse monstro era um ser humano antes! Não tem importância pra você? Isso é assassinato!” – esbravejou Haruka.

“O silêncio está se aproximando. Se eu não detiver esse monstro, vai aumentar o número de vítimas...”

“E não tem alternativa?”

“Não tenho...”

- Michiru, eu... Eu sou uma idiota.

- Não, não é. Haruka olhe pra mim... – a velocista resistia, fitando apenas o carpete da sala. – O que ocorreu não foi culpa sua, nem minha...

- Diga isso à família daquele rapaz.

- Há um culpado sim, e você sabe quem é. Se ficarmos nos culpando, nunca impediremos que aquela criatura desperte.

- Se eu tivesse mais poder... Eu só queria ser mais útil.

- Você é. Eu sei que não conseguiria realizar essa missão se não estivesse ao meu lado. E não falo só como guerreira...

- Bom saber... – sorria a corredora.

- Agora vamos voltar pra cama. Está um bocado frio sem você lá...

- Tarde demais, estou sem sono...

- Não me lembro de ter falado em dormir... – sorriu Michiru estendendo a mão à parceira.

- Não estou realmente no clima, Michiru... – explicou-se a loira, esboçando um sorriso constrangido.

- Mas em que raios está pensando? – riu à expressão confusa da amante – Vamos só conversar... – e guiou a garota até o quarto, agora compartilhado.

E Haruka concluiu. Não foi difícil. A presença de Michiru naquele apartamento se tornara indispensável.

E conversaram. A princípio não foi exatamente um diálogo, pois a corredora respondia monossilabicamente. Então a violinista passou a questioná-la de modo que a resposta não permitisse só “sim ou não”.

- Eu não consigo me lembrar claramente de outras Sailors, tudo que vejo nos meus sonhos são borrões... mas eu arrisco dizer que uma era uma menina alta como você, sabe? Usava os cabelos presos, um rabo-de-cavalo...  E você, do que lembra?

Do rosto de Michiru, a loira encarou o teto, resgatando algumas memórias.

- Da Rainha, mas vagamente...

- Serenity?! E como você a vê?

- Os cabelos longos e loiros, de vestido... e quase tão branca quanto a própria lua. Uma mulher realmente bonita...

O modo afetuoso como a corredora descreveu Serenity poderia ser mal interpretado. Mas a verdade é que as Sailors nutriam um carinho inexplicável pela Rainha, ainda que lembrando vagamente dela.

Longe dali, a ameaça que Uranus e Neptune enfrentavam não se abatia sobre cinco garotas. Makoto, Ami, Minako e Usagi refugiavam-se no Templo Hikawa, moradia de Rei, a Sailor Mars. Usufruíam da paz, tomando chá gelado e conversando trivialidades pela madrugada no grande terraço do local, sem notar que na TV noticiavam a morte de um jovem em um parque de diversões...

A informação tampouco chegou ao apartamento de Haruka. Michiru cuidou para que os aparelhos, que pudessem fornecer qualquer tipo de informação sobre o caso fossem desligados. Ela não tinha esperança que o jovem sobrevivesse.
Com tato, Kaioh tentava livrar a mente da amante de pensamentos depreciativos. 

- Nunca me falou como encontrou esse apartamento, Haruka.

- Ah, isso... Não fui eu, meu tio procurou pra mim. Quando eu vi o apartamento, disse a ele que não precisava disso tudo, bastava um quarto... Daí ele riu e perguntou como raios eu ia guardar os meus troféus e o piano... Você provavelmente acharia meu tio muito estranho.

- Por quê? – quis saber Neptune, que ouvia a história atentamente.

Haruka pareceu lembrar-se de alguma cena rapidamente, pois esboçou um sorriso antes de responder.

- Ele é uma pessoa muito... como posso dizer... exagerada. Ele te vê na rua e já acena freneticamente, dizendo seu nome tão alto que você tem o impulso de cobrir o rosto e sair correndo.

Michiru riu imaginando a cena, nem de longe os parentes que conhecia se comportavam dessa maneira. Achou tão intrigante que indagou por impulso:

- E quando eu posso conhecer o seu tio?

- Hã? Quer conhecê-lo? – Haruka piscou duas vezes surpresa e Michiru corou, ficando um tanto sem graça.

- Ah... qualquer dia desses, sabe? É que... eu nunca conheci ninguém da sua família e... – a própria Neptune pausou uns segundos, achando que tinha falado demais – Bom, ele me parece ser uma boa pessoa. – finalizou ainda corada.

Haruka fitou a garota sem pressa e Michiru achou o silêncio desconfortável. Então, antes que pudesse desconversar, a loira antecipou-se e falou tranquilamente, na sua voz rouca habitual:

- Está bem. Qualquer dia eu ligo pra ele... Mas lembre-se, a ideia foi sua. Não me culpe se morrer de vergonha. – disse Uranus, num tom ameaçador que não assustaria nem uma criancinha.

- Hai. – Neptune sorriu, ao imaginar o encontro com o tio da parceira.

Haruka virou-se por um momento e abriu a gaveta do móvel de cabeceira. Pegou um pequeno objeto e tornou a olhar Michiru.

- Eu esqueci de entregar, tome.

Michiru olhou a palma da mão da loira e viu uma chave prateada, com uma fina corrente de mesma cor. O dia conturbado fizera a violinista esquecer... Ela agora realmente dividia o apartamento com a outra Sailor.

- Obrigada, ‘Ruka. Por falar nisso, agora que... bom, agora que moro aqui, quero dividir as contas, sabe?

- Não se preocupe com isso. – disse a loira. O tom era gentil.

Michiru iria argumentar mas parou quando viu Uranus tatear o móvel ao lado da cama, pegando enfim a foto que deixara lá. Michiru aos dez anos, polindo um violino. Seus olhos verdes passeavam pela imagem, iam de ponta a ponta. Talvez imaginando a mãe da garota chamando-a, querendo um sorriso e uma pose. Talvez imaginando o porquê da senhora não conseguir o que pedira.

- Pode ficar com ela.

Haruka ergueu as sobrancelhas antes de fitar Michiru, que sorria.

- Mas...

- É sério, quero que fique com ela.

- É uma lembrança sua.

- Prefiro as que fiz com você.

- Sua infância foi tão horrível assim?

- Horrível não é bem a palavra...

- Então?

- Queria ter te conhecido antes, Haruka. Sabe, nessa época.

Michiru apontou a foto com um sorriso e Haruka retribuiu lentamente.

- Eu também.

- Porque quem sabe... você não seria tão Casanova... – finalizou em um tom sombrio, alfinetando a corredora.

A velocista arregalou os olhos e soltou a foto. A violinista estava com um ar superior, como se não houvesse contra-argumentação possível para o que dissera.

- Hey, eu não... Michiru, como pode dizer...

É. Talvez não houvesse.

- Mas eu realmente penso que você dever ter sido uma garotinha boazinha e fofa.

Michiru sorriu. Haruka corou.

- Não, não era.

- Como assim “não era”? Por acaso sequestrava e assava pombos de praças ou algo assim?

Uranus abriu a boca, pretendia responder alguma grosseria, mas a própria risada abafou qualquer outra reação. Netpune conseguira. Entre risos, a loira notou estar envolvida pela atmosfera que a outra criara. Como boa pisciana, Michiru arrastou Haruka por onde quis, numa onda calma, lavando e levando aqueles dilemas e pesares para bem longe. Porque assim ordenou às ondas.

E talvez com isso, ela própria, pudesse ter uma noite quase serena. A missão fora cumprida.

Por hora.

(continua)

quinta-feira, 3 de março de 2011

Capítulo 14 – A voz do outro lado da linha

Capítulo 14 – A voz do outro lado da linha.

O líquido marrom preenchia a xícara branca, emanando uma agradável e quase relaxante fragrância. Ao sorver um gole, a garota de cabelos ondulados escutou o toque da campainha. 
Ao abrir a porta, sorriu ao ver quem era.

- Bem vinda de volta, ‘Ruka.

- Arigatou. – sorria, entrando no apartamento – Está melhor? – perguntava enquanto colocava sua pasta no sofá. Ao virar-se, percebera as malas no chão.

- Ah...o motorista trouxe algumas das minhas coisas. – olhou os objetos, quase com desdém. – E...estou melhor sim. – sorriu, tranquilizando-a – Quer um pouco de chá?

- Hum...prefiro um copo de leite gelado, o dia está um pouco quente...

- Perdi muita matéria hoje? – abriu a geladeira para pegar a caixa de leite, enquanto Uranus lhe estendia o copo.

- Não exatamente... – respondia afrouxando a gravata, antes de tomar um gole da bebida.

- Como assim? Parece...chateada. Algum problema no Mugen? – aproximara-se da mesa, onde Haruka se encostara.

- Não...é só...que foi bastante chato sem você hoje... – disfarçava, para em seguida acariciar o rosto de Michiru. Não falaria da contrariedade ao sair do colégio.

- Hum...também senti sua falta... – fechava os olhos – Gosto do seu toque, ‘Ruka.

Neptune percebera que algo não muito agradável acontecera no Mugen. Suspeitas que comprovaria mais tarde, não queria estragar a paz que se formara, com a carícia de Haruka.

- Você almoçou?

- Hum...lanchei alguma coisa...

- Oe, você sabe que é importante se alimentar, Michiru...te disse ontem.

- Eu sei...mas não se preocupe... Aliás, por falar em ‘ontem’, obrigada por ter tocado pra mim, eu adorei... – Michiru abraçava-a, deixando o chá na mesa. Haruka sorria, também deixando o copo de lado. Uma das mãos tocava o queixo de Neptune, fazendo com que olhasse para ela. Inclinando-se, Uranus beijava-lhe uma das bochechas demoradamente, sentindo a outra jovem suspirar.

- Sabe... – interrompia a violinista fitando a loira – Incrivelmente não temos fotos juntas, acho que...simplesmente esquecemos de tirar...

- Hum...é verdade.

- Não teria uma câmera?

- Câmera... – olhava para o lado, pensando – Acho que tenho uma em algum lugar. Vou procurar. – dirigiu-se à sala onde se deparava novamente com as malas da jovem. – Mas primeiro vamos guardar isso. – apontava – No quarto deve ter notado um closet... Eu não uso, pode ficar com ele.

- Ah, obrigada. – sorriu – Hum, acho que alguns cosméticos não vieram... – agachava-se perto de uma das malas – Que bom que este batom veio...é da minha coleção. – pegava o objeto tirando-lhe a tampa.

- Permita-me... – dizia Haruka, sorrindo pegando o batom da mão de Michiru. Ajoelhando-se perto da garota, a loira passava delicadamente o cosmético nos lábios da jovem.

- Você é habilidosa, ‘Ruka – falava sorrindo, enquanto conferia em um pequeno espelho o resultado da maquiagem.

- Tenho decorado o contorno da sua boca, Michiru...acertaria de olhos fechados.

- Só falar não me convence. – ria enquanto Haruka tirava o espelho de sua mão e fechava os olhos.

- Bom, não se mova que eu v... – a corredora abria por alguns segundos os olhos, surpresa por ver os lábios da violinista colado nos seus. Esta acariciava a nuca da loira, subindo um pouco as mãos para os curtos cabelos da parceira.

Uranus deixava o batom cair e agora sua mão direita passeava pelos cabelos da jovem. Não demorou para que o contato fosse estendido à cintura e Neptune já se acomodara melhor, sentada no chão. Sem perder o ritmo, a violinista puxou a camisa da garota praticamente fazendo com que deitasse sobre ela. Ofegante, Uranus tratou de desfazer o nó de sua gravata enquanto Michiru desabotoava a própria blusa. Aos poucos as malas foram cobertas por peças de roupa que naquele momento, seriam tão necessárias quanto usar um pulôver no Saara ao meio-dia.

[...]

A conversa de outrora com a loira fora prazerosamente substituída por suspiros e ofegos. Ainda podia ver sua bela parceira subir beijando-lhe o ventre. A velocista sorria ao perceber que a Sailor ainda tremia pelo recente e apraz evento.

- Devia usar mais vezes batom, fica linda com ele... – Michiru ria referindo-se as marcas vermelhas do cosmético na boca da corredora. Apoiava a cabeça no braço de Uranus, sentindo que a mesma ainda tinha a respiração descompassada.

- Ora, é só você usar mais... – riu com malícia, antes de ver Neptune recuperar a pose.

- Compre seus próprios batons, engraçadinha... – dizia, puxando levemente um das bochechas de Haruka.

- Eu uso por transferência...é mais interessante.

- Hum...tenho de concordar. – abraçava-a, para depois acariciar os lábios da velocista com as pontas dos dedos.

- E-está com fome? – perguntava a loira, enrubescendo ao contato da jovem.

- Às vezes sua timidez se manifesta em ocasiões tão estranhas... – sorria, apontando as roupas sobre as malas. A corredora parecia sem graça. Tinha sentado e estava prestes a levantar quando Michiru a abraçou por trás. – Aonde pensa que vai?

- Tomar banho, antes que meu rosto estoure de tão vermelho...

- Até suas orelhas estão vermelhas... Oh, a nuca também? E aqu...

- M-Michiru! – cobrindo-se como podia, a velocista levantou-se, correndo em direção ao banheiro do quarto. A Sailor dos Mares não evitou um sorriso... Uranus realmente lhe fazia esquecer de tempos ruins.

Juntando as peças espalhadas pela sala, Neptune entrava no quarto. De posse de uma toalha de banho, encostou a cabeça na porta do banheiro e ouviu o barulho do chuveiro usado pela outra garota. Sorriu. Pretendia secretamente juntar-se à jovem, quando escutou o telefone tocar. Enrolando-se apressadamente, foi até a sala, atendendo enfim.

“Alô?”

“Só um minuto, vou transferir a ligação, senhorita.”

“Mas o q...” – a jovem olhava confusa o telefone, antes de encostá-lo novamente no ouvido.

“Alô?” – a voz firme do outro lado fizera Michiru prender a respiração.

“Pai...?” – dizia num misto de surpresa e apreensão.

“Katou talvez passe novamente aí essa semana para entregar outras coisas” – o jeito direto do pai não lhe deixara tão surpresa, era seu costume. O silêncio da jovem o fez continuar. – “Eu quero que saiba...que ainda é minha responsabilidade, Michiru...”

“É, é só isso que eu sou para o senhor, afinal.”

“Quis dizer que...ainda sou seu pai, querida. Meus sentimentos não mudaram, apesar de saber que você pode não acreditar nessas palavras.”

Ao ouvir, Neptune passou rapidamente um dos dedos nos olhos, vira o cômodo ficar turvo. Jurara não chorar mais. Promessa quebrada pelo “querida” na frase do homem.

“Parece que o senhor e a mam...e “ela” tiveram reações bem diferentes...”

“Uma atitude totalmente impensada, eu concordo...mas eu só peço que...”

“Perdoe? O senhor não faz idéia do que é ser expulso de sua própria casa.”

A garota cerrava os punhos ao se lembrar das palavras da mãe. Não esperava que seu pai entendesse, estava farta de justificar-se, principalmente quando não cometera infração alguma. O homem pausava, sentando-se novamente na grande poltrona cinza de seu escritório. Por conhecer o gênio das duas mulheres de sua vida, não ia realmente interceder por perdão.

“Na verdade, eu ia dizer para que desse tempo à situação... Está bem acomodada?”

“E bem acompanhada.”

“Fico mais tranquilo então.” – o suspiro do homem enfatizava a sinceridade do telefonema. A Sailor esboçava um sorriso e baixava sua guarda brevemente, questionando o pai.

“Por que o senhor não...ligou antes?” – falava, quase sussurrante.

“Sabemos que você não ouviria.” – parecia sorrir do outro lado da linha – “Decidi dar tempo a tudo isso, sugiro que faça o mesmo.”

“Vou tentar.”

“Que bom... Preciso ir agora, mas manterei contato, certo?”

Um inesperado alívio veio ao desligar o telefone. Provavelmente mútuo. Era um começo. Promissor por sinal. Não pensou que falaria tão cedo com o pai... A fama que o precedia na mídia não era das melhores. Considerado uma raposa impiedosa no mundo dos negócios, tornava-se muitas vezes complacente em assuntos familiares. Especialmente naqueles que envolviam sua única filha.

A violinista ainda encarava o móvel quando ouviu um familiar barulho. Ao virar-se, descobriu ser o clique de uma máquina, a loira sorria antes de bater a próxima foto...

- Ok, agora sem a toalha. – sorria, em absoluto cinismo enquanto Michiru se aproximava, rindo.

- Talvez se você não tivesse saído do banho, pudéssemos negociar isso. – mostrava um meio sorriso, para em seguida cruzar os braços.

- Vamos Michiru, não seja má...

- Má? Se o telefone não tivesse tocado nós iríamos conversar...debaixo do chuveiro. – ria.

- Ei! Só por que o telefone tocou isso não vai mais acontecer?! – a corredora segurava a máquina com as duas mãos, franzindo o cenho. A reação parecia divertir Neptune, comparando mentalmente a expressão da loira com um filhotinho abandonado de gato.

- Quem sabe... Como saí na foto?

- A toalha atrapalhou bastante a imagem...

Michiru riu.

- Ara...quer dizer que se eu tirar uma foto sua agora, a roupa vai estragar totalmente a imagem, não? – Haruka suspirava, por ver que suas palavras tinham se voltado contra ela. Michiru geralmente saía-se muito bem de suas pequenas armadilhas.

- A-ah... e quem ligou?

- Meu pai...

- Vocês brigaram...?

- Não, foi até surpreendentemente tranquila a conversa...

- Essa é uma boa notícia. – sorria.

- Sabe, eu me sinto até um pouco constrangida por ter pensado tão mal do meu pai... Eu não fazia idéia de que ele reagiria... digamos... bem a tudo isso...

- Está afirmando o quanto gosta de você, princesa...

- Sim... e eu o amo por não ter me excluído de sua vida... Queria te apresentar a ele.

- Michiru...

- Ele veria como eu escolhi bem...

- Princesa...

- E ele não é tão assustador quanto dizem...

- Ei...

- Hum?

- Deixe-o se acostumar com a situação primeiro, é tudo muito recente... – Neptune sorria ao escutar Uranus, ouvira algo parecido minutos atrás.

- Vocês se dariam bem...

- Hey, eu lembrei que preciso te informar de algo...

- De quê? – caminhava até o banheiro e a loira a seguia, encostando-se na porta. Logo dava as costas. Michiru empurrara levemente a porta, mas Uranus podia ver a toalha rosa-claro pendurada no gancho de alumínio. Sua face ganhou aos poucos rubor, ao imaginar sua violinista no banho. A contradição era até engraçada. Há pouco tinham acabado de rolar pelo chão da sala, espalhado roupas, satisfeito todo aquele desejo repentino e Haruka ainda corou. Achou-se idiota e riu se si mesma. Embora não tivesse se dado conta que contradições como essas geralmente eram perdoadas na adolescência.

- Haruka? Ainda está aí? Pode falar, estou ouvindo.

- “Concentre-se na mensagem, sua idiota. Não no barulho do chuveiro...nem em quem está debaixo dele...Quer dizer, o que ela ia pensar de mim? Nós praticamente acabamos de...” A-Ah...hoje na aula de artes a professora nos surpreendeu, contando sobre a próxima avaliação.

- Hum...e será complicada?

- Pode-se dizer que sim... faremos uma peça.

Haruka esperava um “O quê?!” da outra jovem, mas, para sua surpresa não aconteceu.

- Ouviu o que eu disse, Michiru? – dava duas rápidas batidas na porta do banheiro.

- Uma peça?

- Sim, e infelizmente não podemos substituir com provas...

- Parece interessante, ‘Ruka.

- Hã? Interessante? É tudo que não precisamos no momento!

- Haruka, onde você colocou o condicionador?

- Oe, você não me parece muito preocupada com a notícia. – a loira arqueava uma sobrancelha – Ah, está no balcão.

- Pode pegar pra mim? – Neptune havia perguntado naturalmente, mas sua parceira hesitava em entrar. Constrangia-se quando era pega de surpresa pela garota. Abrindo a porta devagar, fixava seu olhar no balcão, buscando o produto. Tendo o condicionador em mãos, a velocista arrepiava-se... Vira as formas de Neptune ainda que rapidamente, refletidas no espelho. Olhando na direção contrária, aproximava-se do box.

- A-aqui...

Uranus parecia agradecida por Neptune estar com os olhos fechados, por causa do xampu. Não tinha notado quão vermelha a corredora estava.

Já devidamente trocada, a Sailor dos Mares arrumava seus pertences no closet com ajuda da outra jovem.

- Eu ainda não acredito que tenha gostado da ideia do teatro...

- Bom, acho que será uma forma de não pensar muito em tudo que aconteceu... E já li essa obra de Shakespeare, é ótima.

- Eu não teria paciência para decorar as falas...

- É uma pena você não participar... Viola é perfeita para você. – Michiru deu uma piscadela.

- O problema é quem seria meu irmão gêmeo... não existe ninguém no Mugen tão perfeito quanto eu...

- Ora, sua convencida! – Neptune ria, jogando uma peça de roupa em Uranus.

- Uma...calc... – Michiru olhava para as mãos da corredora com espanto, tinha jogado uma de suas calcinhas.

- Me dê isso! – interrompia a violinista.

- Não... não estou a fim... – Haruka sorria maliciosamente, estendendo o braço para cima, evitando que Neptune alcançasse.

- É assim? Então vamos ver o que seu guarda-roupa tem de interessante... – sorria, caminhando até uma das gavetas do móvel. Haruka olhava espantada e logo jogava a lingerie de volta.

- Bom...vamos voltar a arrumar. – tossia, disfarçando seu nervosismo, esperava que a Sailor desistisse.

Ao remexer em mais uma mala, a velocista encontrara um álbum de fotos, ao abri-lo, vira sua amante aos dez anos com algum uniforme. Pelos outros detalhes da imagem, era a roupa padrão de uma orquestra. Estava sentada no que parecia ser um palco. Cabisbaixa, polia um violino. Haruka sorria levemente, lhe agradava descobrir mais sobre a história de Michiru. A mesma, ao notar o que a outra encontrara, chegou mais perto. Uranus talvez nunca confessasse o quanto queria aquela foto. Tinha achado Neptune extremamente fofa.

- Ah...não sabia que algumas fotos estavam na mala... Essa foi tirada no final do ensaio.

- Tão séria... quem tirou?

- Minha mãe... – desviava o olhar por alguns segundos. Gesto que não passou despercebido pela outra garota. Largando a foto no cômodo ao lado da cama, Haruka aproximava-se de Michiru, acariciando seu rosto.

- Ei...

- Não, não se preocupe...eu estou bem. – sorria, abraçando a corredora. Com a cabeça encostada no peito de Uranus, ouvia-a suspirar. Fitando-a, aos poucos seus lábios chegavam perto dos da Sailor, porém, uma familiar sensação correu por todo seu corpo. E não era nada agradável. Fechava os olhos rapidamente em arrependimento. 

- Não é possível... – dizia Uranus ao avistar sua parceira com o Aqua Mirror em mãos.

- Parece...outra possessão.

- Local...?

- Não consegui ver com clareza...mas parecia um parque.

- Hum...o inimigo parece atacar lugares mais isolados...ah, poderia ser um parque fechado?

- Conheço um que está em reforma.

- Vou cobrar o beijo. – a loira esboçava um sorriso antes de pegar a chave do carro e dirigir-se à porta. Michiru acompanhava-a com a mesma expressão, mas estava receosa. Nunca sabia o que esperar das missões, por mais que treinassem. À caminho, respirava fundo. O seu medo poderia alimentar a criatura. Não poderia morrer. Não agora. Não quando tinha o amor de certa velocista...


(continua)